Hoje é um bom dia para ver "I Lost My Body"
- Jaime Lucas Pires
- 3 de fev. de 2021
- 7 min de leitura

Assim que vi o filme I Lost My Body (J’ai Perdu Mon Corps, na versão original), achei de extrema importância dedicar-me à composição de uma breve análise do mesmo, não só de modo a homenagear aquele que foi, na minha opinião, um dos melhores filmes de 2019 e, simultaneamente, um dos mais discretos, na medida em que ainda hoje a obra, encontrando-se no Netflix, não tem obtido o devido reconhecimento, mas também de forma a destacar a relevância da visualização generalizada deste filme para a desconstrução de um estigma associado aos filmes de animação, comummente equiparados a “filmes para crianças”. Entenderemos, mais adiante, como Jérémy Clapin, realizador de I Lost My Body, desmistifica e descomplica a forma como os filmes animados são compreendidos, procurando indicar a animação não enquanto um género (na acessão habitual da palavra) do cinema, mas enquanto um meio para apresentar uma obra cinematográfica.
Tendo sido muito positivamente recebido pela crítica, e nomeado para um Óscar da Academia na categoria de melhor filme de animação, o primeiro filme animado a ser premiado na International Critics' Week no Festival de Cannes conta a história de uma mão (sim, uma mão) que vagueia pelas ruas e edifícios de Paris em busca do seu corpo. Este corpo pertence a Naoufel (Hakim Faris), um jovem-adulto órfão, que vive com o tio e com o primo, trabalhando enquanto estafeta para uma cadeia de pizza fast-food. Numa noite a trabalhar, conhece Gabrielle (Victoire du Bois), uma juvenil bibliotecária, cuja paixão lhe trará a luz que o protagonista necessitava de forma a libertar-se do peso de uma vida penosa que carregava desde a morte dos seus pais. Compreendemos então que a trajetória psicológica e emocional deste rapaz se desenrola em três linhas narrativas distintas, que procuram traduzir o percurso de autoconhecimento travado pelo mesmo, e que, compreensivelmente, causam algum estranhar ao espectador que se depara pela primeira vez com o filme. Por um lado, acompanhamos o caminho de uma mão decepada, que, fugindo de um laboratório parisiense, se aventura pelas ruas da capital de França em busca do corpo a que pertence. Por outro lado, presenciamos a construção de uma relação íntima entre os dois jovens anteriormente referidos, e a forma como a figura feminina é capaz de completar as lacunas existenciais sentidas pela personagem principal. De forma a servir este propósito, são-nos constantemente apresentados flashbacks da vida de Naoufel, convenientemente exibidos a preto-e-branco, que resultam numa construção do perfil psíquico do protagonista tendo em conta as suas origens e as suas paixões primaveris.
São tantos os pormenores e os elementos cinematográficos e narrativos que contribuem para que a visualização de I Lost My Body seja absolutamente hipnotizante e nos agarre ao ecrã desde o primeiro minuto, deixando-nos de olhos postos no mesmo até quando os créditos finais assinalam que é hora de nos levantarmos do sofá, digerindo aquilo que por nós passou, que elencá-los de forma exaustiva neste texto se tornaria, sem sombra de dúvidas, enfastiante. Não podemos, contudo, deixar de fazer uma breve referência à animação impactante, sóbria mas fluída, desabitual na medida em que se distancia dos costumeiros processos de animação digital 3D, usados pelas grandes companhias de filmes de animação da atualidade, como, por exemplo, a Pixar e a Illumination, sendo escolhido pelo realizador o recurso a um procedimento misto que relembra uma animação mais simples, desenhada, ironicamente, “à mão”. Ainda neste ponto, destaca-se o modo como a animação confere às personagens envolvidas uma carga emocional adicional e como atribui aos objetos inanimados, neste caso, a uma mão, uma fluidez de movimento e uma naturalidade tal que permite ao observador uma identificação com essa mesma figura. Fazendo referência a um comentário ao filme que encontrei no Letterbox, e ao qual achei particular graça, the thing in addams family walked so the hand in i lost my body could run.
Para além da relevância da qualidade técnica da animação para a afirmação da obra em questão enquanto um dos melhores filmes do ano de 2019, acredito ser muito importante falar da banda sonora sempre que se fizer um juízo de valor de I Lost My Body. Dan Levy, músico da banda pop franco-finlandesa The Dø, foi o responsável pela composição dos temas que acompanham o filme de Jérémy Clapin, e é caracterizado pelo realizador enquanto coautor da obra em análise. Depois de vermos o filme com um ouvido atento, compreendemos que esta afirmação é plenamente justificável. A verdade é que os sintetizadores e os instrumentais de cordas utilizados pelo compositor embalam as cenas de uma forma notável, edificando pontes entre as diversas linhas narrativas do filme. Com efeito, a música extremamente imersiva de Dan Levy, juntamente com as participações de músicos e grupos em ascensão como S+C+A+R+R, Laura Cahen, Swan e L’Ordre Du Périph, é absolutamente essencial para a criação de um universo em que personagens como Naoufel e Gabrielle habitam, servindo para a (des)construção do puzzle que é I Lost My Body.
Contudo, não obstante a qualidade elevada da animação do filme ou da banda sonora utilizada, acredito que o que torna a primeira longa-metragem de Clapin tão especial é, realmente, a sua história, e a mensagem que esta pretende passar. O argumento, adaptado de um livro de Guillaume Laurant, foi muito bem conseguido, não só pela forma como é construído um percurso de autoconhecimento gradual e extremamente cauteloso através dos vários elementos da obra, como pelo modo como a temática do destino é abordada, através de uma dialética simultaneamente simples e profunda. Por um lado, encontramos um filme extraordinariamente inteligente no modo como se serve da simbologia para construir a autodescoberta gradativa de Naoufel. A mão que deambula pela metrópole em busca do protagonista não representa mais do que a procura do “eu” por si próprio, sendo construída uma intensa história de perda, não só do desaparecimento da mão, mas do desencontro total com tudo aquilo que motiva a vida, tais como a família, a vocação profissional, o amor. Por outro lado, associado a este sentido apresentado, percebemos que a obra cinematográfica em questão se destaca pelo modo como representa, através das suas personagens, a confrontação direta do destino. Perante um passado que o condiciona e um presente que parece não trazer melhorias para a sua vida, I Lost My Body revela-nos a vitória de um jovem não conformado com o futuro a que está fatalmente unido sobre esse mesmo destino que o promete prender para sempre. Através da relação que constrói com Gabrielle, Naoufel aprende a libertar-se dos remorsos que atormentam a sua história de vida, e compreende as escolhas que tem de fazer para conseguir ser o dono da sua própria sorte. Poucos foram os filmes que vi em que temáticas como as abordadas foram tão bem trabalhadas, conjugando uma profundidade imensa com uma subtileza incomparável.
Atentando então no processo narrativo, compreendemos que, apesar de o filme em destaque envolver um momento breve de nudez, de encontrarmos a utilização ocasional de palavrões, e de repararmos em certas cenas que compreendem alguma violência gráfica, é através dos temas abordados que percebemos que Clapin não constrói em I Lost My Body um filme de animação para crianças. A perspicácia da simbologia a que o realizador e argumentista dá uso ao longo da obra, a complexidade das linhas narrativas que se desenrolam para a apresentação da história em todas as suas dimensões e a maturidade das temáticas desenvolvidas impedem-me de recomendar este filme a qualquer criança. De facto, ao idealizar esta obra cinematográfica, o realizador francês nunca procurou promovê-la no contexto da maioria dos filmes de animação da atualidade, afirmando constantemente que era uma obra dirigida a adultos, originada também para quebrar a associação que se faz de forma generalizada entre filmes de animação e filmes infantis. A obra em questão não nos fala sobre uma mão, mas sobre o resto do corpo, sendo uma reflexão sobre a necessidade de voltarmos às origens para compreendermos quem somos: uma ponderação sobre a necessidade de voltarmos a ser crianças e de recuperarmos os nossos sonhos mais ingénuos, e por isso mesmo não pode ser compreendido por alguém que ainda não abandonou a feliz condição de ser criança. É um filme sobre nós, sobre o que é ser Homem e sobre o que é estar encapsulado entre as decisões do passado e a fatalidade do futuro que tantas vezes nos assombra.
Dito isto, resta-me agradecer a Jérémy Clapin pela coragem que revelou ao avançar de forma independente com uma ideia tão criativa, sem olhar aos problemas que uma narrativa como a de I Lost My Body poderiam, eventualmente, levantar. A primeira longa-metragem do realizador apresentou-se tão inovadora e original como as curtas que o artista já apresentara (em Skhizein, o protagonista é um homem que se encontra a 91 centímetros de si próprio, e Une Histoire Vertebrale é protagonizada por um personagem cuja coluna perfaz um ângulo reto na zona do pescoço). Ao longo da sua carreira o criador tem mostrado considerável audácia pelo modo como permite uma erupção de absurdidade nos seus trabalhos, sem menosprezar o conteúdo e a mensagem dos mesmos. Compreendemos, porém, que existem cada vez mais realizadores a arriscar e a alargar os limites anteriormente concebidos na área da animação, e poder-se-á dizer que, quando falamos de originalidade, os últimos anos marcaram a entrada numa nova era dourada dos filmes animados. Falamos de filmes como Lego Movie, Into the Spider-Verse, as obras de stop-motion de Wes Anderson e, mais recentemente, Soul, produções que, mais ou menos infantis, encaminham o cinema de desenhos animados na potencialização máxima de mundos fantásticos, promovendo a verdadeira vantagem da cinematografia animada, que é o rompimento das fronteiras da forma. As obras referidas, apresentando estilos de animação bastante distintos, revelam que a animação não é um género do cinema, mas um meio para a transmissão da criatividade do autor, que encontra, deste modo, um horizonte de oportunidades para a trabalhar. O filme de Clapin é um exemplo perfeito disso mesmo, em que se encontram sequências de ação, cenas românticas e momentos de verdadeiro thriller, inseridos no peculiar percurso de uma mão decepada que deambula por Paris. Uma recomendação que não poderia fazer com mais fulgor: hoje é um bom dia para ver I Lost My Body.
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