"Mystery Train", um retrato dos Estados Unidos da América
- Jaime Lucas Pires
- 11 de ago. de 2020
- 5 min de leitura

Desde a década de 80 que Jim Jarmusch se tem afirmado como um dos realizadores mais proeminentes e idiossincráticos do cinema independente americano, servindo-se de uma estética minimalista muito característica, da construção de personagens extremamente complexas do ponto de vista emocional (e da elaboração de diálogos que apontam para uma caracterização concisa e coesa dessas mesmas figuras), e de um ambiente cómico e descontraído para, através de clássicos instantâneos como Down By Law (1986), Night On Earth (1991) e Paterson (2016) construir uma carreira digna de culto.
No seu percurso filmográfico, um dos filmes que cinematograficamente mais se destaca e mais contribui para a afirmação de Jarmusch entre os grandes nomes da história da indústria é Mystery Train (1989), uma produção, como nos habituou o realizador, de baixíssimo orçamento, e que, apesar de por diversas vezes relembrar o Jarmusch de Permanent Vacation (1980), o seu primeiro filme, menos maduro e demasiadamente despreocupado com o excesso de abstracionismo pretensioso que habitualmente revela de forma mais subtil nos seus filmes (não tendo também, para muitos, a força espirituosa e caricata dos diálogos memoráveis associados às personagens das suas duas obras anteriores, Stranger than Paradise e Down By Law), ganha, a meu ver, alguma relevância na filmografia do autor pelo modo como é construído, através da perspetiva de três distintos conjuntos de personagens, estereótipos caricaturados das suas próprias nacionalidades, um retrato dos Estados Unidos da América, representado, por exemplo, através da exposição da miscelânea étnica e cultural verificada no país, da observação da necessidade de culto americana de figuras do mundo artístico e do desenho da linha ténue que existe entre a segregação cultural voluntária entre as culturas branca e negra e o racismo estrutural que ainda hoje se verifica nos EUA.
O filme que resultou na segunda nomeação de Jim Jarmusch ao prémio máximo do Festival de Cannes, a Palma de Ouro, apresenta-nos um tríptico de histórias que envolvem a passagem ou, no último caso, a vivência de personagens estrangeiras em Memphis, no Tennessee. O segmento inicial, que é, na minha opinião, o mais interessante, "Far from Yokohama", revela-nos um jovem casal japonês numa peregrinação cultural pela pátria natal de estrelas como Carl Perkins, Roy Orbinson, Jerry Lee Lewis e, mais importante de todos, o "rei do rock", Elvis Presley, sendo explorada também a desilusão das duas figuras assim que se deparam com a forma superficial e comercializada como são tratados os seus ídolos musicais em espaços iconográficos e mitificados pelo casal como Graceland e o Sun Studio; o segundo segmento, "A Ghost", dá-nos a conhecer uma mulher italiana, viúva, perdida na cidade e altamente exposta aos seus perigos, prazeres e falcatruas, tendo em conta a sua exagerada ingenuidade; o segmento final, "Lost in Space", foca-se nas peripécias de um jovem britânico que, na mesma noite, perdeu o emprego e foi abandonado pela namorada, acontecimentos que o levam a procurar consolo no consumo de bebidas alcoólicas, na violência, e na companhia do seu melhor amigo e do seu cunhado. Para além disso, as narrativas em questão estão todas conectadas pela opção (ou necessidade) comum a todas as personagens de se alojarem num hostel decadente nos subúrbios de Memphis, controlado pelas figuras cómicas e desordenadas de um único criado de quarto e seu patrão, pela presença mística da figura de Elvis Presley em todas as histórias (revelada através da transmissão constante na rádio regional do "Blue Moon", música do artista, e através da exibição constante de retratos do músico nas paredes do quarto do estabelecimento) e pelo misterioso tiro que todos os protagonistas ouvem vindo de um dos quartos do hostel.
Inicialmente, aquilo que prende a atenção do espectador ao longo de Mystery Train não são as subentendidas considerações políticas e sociais que o realizador prepara durante o filme através das personagens e suas atitudes, mas o enorme controlo técnico que Jarmusch e a sua equipa demonstram no decorrer da produção relativamente aos aspetos cinematográficos independentes à história, mas que, em última instância, completam o filme e a sua narrativa de um modo interessantíssimo. Falamos, pois, da imensurável, embora extremamente contida, beleza fotográfica que o realizador e o diretor de fotografia (o mítico Robby Mueller) imprimem na obra, procurando trabalhar a elegância suburbana dos bairros mais pobres de Memphis, juntamente com o seu carácter incógnito e inseguro, criando jogos de cores e de luzes para ilustrar não só o perigoso artificialismo de uma América que transmite, ilusoriamente, o sonho de uma vida que encontra a sua felicidade no consumo desenfreado e no imediatismo, mas também a tristeza vazia que se esconde atrás e à frente das iluminações de néon das ruas da cidade norte-americana.
Não podemos ainda ficar indiferentes à envolvente banda sonora do filme, preparada por John Lurie, artista recorrente nas produções de Jarmusch enquanto ator e instrumentista, e que na obra em análise se serve de elementos característicos dos Blues e Rock n' Roll (associados à musicalidade dos artistas que, em Memphis, no Sun Studio, lançaram a sua carreira) e os mistura com o seu habitual toque jazzístico, de forma a criar um ambiente arrastado e deprimente que reflete as desilusões e tristezas cíclicas daqueles que passam pela segunda cidade mais populosa do Tennesse com o intuito de satisfazer as suas dores, realizar os seus sonhos e viver as suas ilusões. Por fim, acredito que Mystery Train é o primeiro filme de Jim Jarmusch que revela claramente que este não é (apenas) um "realizador de atores", como fora acusado anteriormente, mas que consegue, numa obra em que as representações dos protagonistas, apesar de positivas, são bastante sóbrias e não apresentam uma qualidade ou extravagância sobrenatural (à exceção de um jovem Steve Buscemi que, num dos seus primeiros projetos, abre caminho para uma carreira que se tornaria memorável), construir diálogos em que nenhuma palavra é desperdiçada, e onde a banalidade de um lamento, de um desabafo ou de uma confissão se transformam em pura poesia.
Acredito, contudo, que aquilo que distingue Mystery Train das restantes criações de Jim Jarmusch é a sua dimensão crítica, apontada para um país que, idealizado por tantas figuras de outras nacionalidades, esconde uma podridão social e cultural nas suas metrópoles. Efetivamente, enquanto são construídos diversos comentários breves a algumas características da sociedade americana que expõem a sua plasticidade, como a institucionalização da devoção religiosa, embora vazia, a personalidades do panorama artístico e a forma deteriorada como se apresentam os estabelecimentos turísticos, de restauração e de hotelaria, o realizador procura focar a obra em questão numa visão exterior da cidade de Memphis, representação generalizada dos complexos urbanos de todos os estados dos EUA, onde a vasta diversidade étnica internacional (apresentada através dos protagonistas de origem japonesa, italiana, inglesa e canadiana) e a complexa segregação cultural sistémica intranacional resultam numa série de conflitos hostis, originando a criação de fações intolerantes para com a comunidade oposta. Jim Jarmusch critica algo que ainda hoje se verifica nos Estados Unidos da América, o racismo estrutural que assombra e enfraquece o país e as suas comunidades, e encontra a sua origem na segregação cultural forçada tanto pela comunidade branca como pela comunidade negra. Isto, juntamente com a história conturbada de um país onde durante tantos anos perdurou a escravatura e foi promovido o ódio racial, cria um preconceito que habita as ruas de Memphis com uma subtileza perigosa. Em Mystery Train, Jarmusch apresenta ao espetador aquilo que acontece a uma nação que, edificada na promoção da marginalização das culturas minoritárias, não é capaz de restabelecer a união entre as comunidades que foram distanciadas pelo sistema, e que depois de alguns anos de subsistência de uma paz podre no seu território, implode. Um filme importante para ver nos dias que correm.
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