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"Fratelli Tutti" e o combate aos nacionalismos fechados

  • Foto do escritor: Jaime Lucas Pires
    Jaime Lucas Pires
  • 9 de dez. de 2020
  • 9 min de leitura

Atualizado: 3 de fev. de 2021




Fratelli Tutti é a mais recente encíclica papal, tendo sido escrita pelo Papa Francisco durante a pandemia, publicada pelo Vaticano no início de outubro, focando-se nuclearmente na importância da fraternidade e da amizade social. O documento em análise, endereçado a toda a Igreja e a todos aqueles que com ela estejam dispostos a aprender, caracteriza-se pela sua índole particularmente política, sendo a vigésima encíclica compreendida entre os ensinamentos da Doutrina Social da Igreja, editada cinco anos após a Laudato si’, também da autoria do atual Sumo Pontífice.

Traduzido para português, o título da encíclica do ano presente explora a ideia de que, na Terra, somos “Todos Irmãos”, e assim introduz a obra que explora o sonho de uma Humanidade unida em nome de um bem-comum, em nome da dignidade humana. É um convite a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço, e que não diz respeito apenas a certas religiões, etnias ou grupos sociais, mas sim à população global como um todo. Percebemos então que o Papa se serve da parábola do Bom Samaritano, presente no Evangelho de São Lucas, enquanto guia fundamental da edificação de um amor ao próximo incondicional, fazendo sucessivas referências a esta mesma história que Jesus nos transmite.

Assim, compreendemos que o Santo Padre procura demonstrar que é feliz quem ama o outro, e, neste contexto, fundamenta as suas teses sobre a fraternidade universal e os seus preceitos não só nas obras de alguns dos mais célebres pensadores da Igreja, entre os quais destaco São Paulo, Santo Irineu de Leão, São João Evangelista, São João Crisóstomo, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, São João Paulo II e, o Papa Emérito, Bento XVI, como também se diz inspirado por distintas figuras não católicas, como Martin Luther King Jr., Desmond Tutu e Mahatma Gandhi. No entanto, são três outras personalidades que recebem o papel de destaque na encíclica de Bergoglio: São Francisco de Assis, cuja obra e conduta iluminam a necessidade de valorizar e amar todas as pessoas, independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita; o Imã Ahmad Al-Tayyeb, com quem Francisco cultiva um diálogo de aproximação da fé cristã com a fé islâmica de modo a construir propostas de criação de pontes entre estas duas religiões e o resto do mundo; e, por fim, Charles de Foucauld, beatificado em 2005, e cuja experiência de vida de identificação com os últimos, os mais abandonados, Francisco gostaria que cada um tomasse como exemplo, em jeito de conclusão, para desejarmos, como o Beato, sermos irmãos universais.

Com efeito, a encíclica papal tem como objetivo a promoção da fraternidade global entre todos os homens e mulheres do planeta em que habitamos. Para a alcançar na sua plenitude, no entanto, Francisco diz que ainda há um longo caminho a percorrer, e dedica o primeiro capítulo da sua obra à enumeração de todos os males que assolam a Humanidade, e que impedem a construção salutar de uma comunidade global onde possa reinar o amor, evidenciando a crise ambiental que atormenta a natureza, o desperdício alimentar, a violência contra as mulheres, a escravatura, o aborto, o abandono repetido das gerações mais velhas e as guerras e perseguições religiosas, entre outros problemas de igual gravidade. Contudo, o Papa foca-se com particular veemência em duas crises relacionadas que consternam a Humanidade e que, infelizmente, nem toda a gente deu pelo seu aparecimento. Falamos, por um lado, de uma economia libertária defendida por muitos e que resulta numa acentuação assustadora das desigualdades entre os poderosos e aqueles que são mais pobres, um desequilíbrio que se revelou ainda mais contrastante após a eclosão da pandemia atual, e, por outro lado, do ressurgimento de nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos, que, por todo o mundo, atrasam e bloqueiam a construção necessária de um “nós”, sendo este o ponto que vamos priorizar ao longo deste ensaio.

Como forma de introduzir esta problemática, Francisco afirma que importantes passos foram dados em prol da promoção da paz, da diversidade e da cooperação internacional após os conflitos e os fracassos do século XX, tais como a fundação da União Europeia, as tentativas de uma integração latino-americana e as demais cláusulas de pacificação e conciliação que surgiram um pouco por todo o globo. Contudo, o Sumo Pontífice não deixa de reparar que a história dá sinais de regressão, e é com base neste comentário ominoso que faz referência aos ufanismos nacionalistas que têm vindo a renascer em vários países, e que perturbam a construção de uma sociedade aberta com egoísmos e ódios disfarçados de amor à pátria. Segundo Francisco, quais são as características comuns a estas ideologias de diferentes cores que surgem como entraves à idealização da amizade entre os povos e entre os cidadãos de todos os países?

Ao analisarmos a fundo a encíclica em questão, não se torna difícil compreender que a principal particularidade dos falsos patriotismos é o medo do desconhecido, que se traduz numa repulsa por aqueles que não pertencem ao território onde estas ideologias crescem. Os nacionalismos encerrados em si mesmos pretendem garantir a estabilidade e a paz com base numa falsa segurança sustentada por uma mentalidade de medo e desconfiança, e verifica-se assim, infelizmente, um crescimento da cultura dos muros, que resulta inevitavelmente num empobrecimento cultural derivado da falta de acolhimento a todos os que são estrangeiros e que não sabemos receber com gratuidade. Combate-se a abertura das nações aos emigrantes e acusam-se etnias de serem responsáveis pelos problemas mais graves de um país, sendo difundida uma mentalidade xenófoba com fins políticos. Com efeito, associado ao colapso moral derivado do encerramento das fronteiras, encontramos um problema que pode ser ainda mais grave, que é a discriminação de uma minoria da sociedade por parte de uma fação política. Cada irmã ou cada irmão que sofre, abandonado ou ignorado pela (...) sociedade, ainda que não seja um estrangeiro na interpretação literal da palavra, é um estrangeiro existencial, pois essa ideologia da divisão fá-los sentir-se como forasteiros no interior da própria terra: o racismo é um vírus que muda facilmente e, em vez de desaparecer, dissimula-se, mas está sempre à espreita.

Na verdade, quando falamos desta tendência para a criação de dicotomias hostis, é impossível não fazer referência à utilização das redes sociais enquanto armas que alavancam os ódios raciais e étnicos. Os rancores que as ideologias extremistas geram nas pessoas encontram um espaço de ampliação incomparável no mundo digital, que tenha embora muitas características positivas, tem uma capacidade destrutiva sem limites. Para além disso, os dispositivos móveis e os computadores são utilizados de forma simultaneamente sagaz e bruta para a criação de dualismos artificiais entre “nós” e “eles”, e alguns partidos servem-se do mecanismo político de exasperar, exacerbar e polarizar para deixar de ver adversários, preferindo olhar para os opositores ideológicos como inimigos. Através das redes sociais, recusa-se o diálogo, ferramenta fulcral para o desenvolvimento de uma verdadeira comunidade, e criam-se verdadeiros campos de guerra virtuais onde aquilo que ainda há pouco tempo uma pessoa não podia dizer sem correr o risco de perder o respeito de todos, hoje pode ser pronunciado com toda a grosseria (...) e ficar impune. O Papa recorda ainda que o funcionamento de muitas plataformas acaba frequentemente por favorecer o encontro entre pessoas com as mesmas ideias, dificultando o confronto entre as diferenças. Estes circuitos fechados facilitam a divulgação de informações e notícias falsas, fomentando preconceitos e ódios.

Por fim, detetamos nos nacionalismos oclusos uma propensão para a manipulação da verdade e das palavras que outrora tiveram um sentido nobre. Com o intuito de dissolver a consciência histórica, suprimir o raciocínio crítico e desacelerar o empenho por uma sociedade justa, os ideólogos destes movimentos degenerados desfiguram termos como democracia, liberdade, justiça e unidade, servindo-se deles enquanto instrumento de atração de massas e de domínio político, como títulos vazios que podem servir para justificar qualquer ação. Como Hannah Arendt previra nos totalitarismos, também nós encontramos nos populismos do século XXI uma inclinação para a distorção da verdade, assim como uma utilização maciça da propaganda transformada em “lavagem ao cérbero”, e da (...) mentira como instrumento normal e quotidiano da ação política (1). O Papa Francisco faz ainda referência à conhecida estratégia política que consiste na apresentação de soluções simples para problemas complexos, consequência do facto de tantas vezes procurarmos o resultado rápido e seguro. Atentando na encíclica, percebemos que estas ideologias não são favoráveis à construção de uma sólida e honesta fraternidade social, pois respondem às exigências populares com o fim de ter garantidos os votos ou o apoio do povo, mas sem avançar numa tarefa árdua e constante que proporcione às pessoas os recursos para o seu desenvolvimento, de modo que possam sustentar a vida com o seu esforço e criatividade. É à volta desta característica que Francisco estabelece a importante distinção entre um líder popular e um líder populista: o primeiro é capaz de interpretar o sentir de um povo, a sua dinâmica cultural e as grandes tendências de uma sociedade, sendo capaz de visualizar os efeitos a longo prazo (2) e de assumir também a responsabilidade pelas gerações futuras, assim como idealizara Hans Jonas no século passado; o segundo procura apenas atrair consensos a fim de instrumentalizar politicamente a cultura do povo, sob qualquer sinal ideológico, ao serviço do seu projeto pessoal e da sua permanência no poder, representando uma fação política dispensável para a edificação de uma sociedade preparada para as eventualidades do amanhã.

Deste modo, ao elaborar a distinção entre os governantes populares e os governantes demagógicos, o Sumo Pontífice mostra que não é um cético em relação à política, acreditando que a partir desta se podem gerar grandes bens. A construção de um mundo onde todos os homens e mulheres são reconhecidos enquanto irmãos não só não é uma proposta utópica, como deve ser desenvolvida através de políticos sérios, capazes de tomar decisões corajosas e de encontrar os percursos eficazes no âmbito da solidariedade internacional e social: a boa política procura caminhos de construção de comunidade nos diferentes níveis da vida social, a fim de reequilibrar e reordenar a globalização para evitar os seus efeitos nocivos. Francisco lembra-nos assim as palavras de Bento XVI, que nos disse na sua terceira encíclica que a caridade não se verifica exclusivamente nas relações pessoais do quotidiano, mas também nas macrorrelações como relacionamentos sociais, económicos e políticos (3), sendo referido por Bergoglio que a vocação política é uma das mais preciosas formas de caridade, pois protagoniza a estruturação de sociedades abertas, justas e solidárias.

Efetivamente, compreendemos que, na Fratelli Tutti, o Papa Francisco enfatiza a força da política e dos governantes das nações enquanto agentes de mudança, seja de uma forma caridosa, autêntica e preocupada com a eliminação das iniquidades sociais, seja de uma forma degenerada, obtusa e focada fundamentalmente na conquista e permanência maquiavélica no poder. Será que isto quer dizer que a única forma de contribuir para o projeto de fraternidade universal, aos olhos do Santo Padre, é através dos poderes governativos e administrativos? Certamente que não.

Na verdade, ao longo de todo o documento, mas com particular destaque no segundo capítulo da obra, Francisco apresenta-nos diferentes reflexões construídas com base na parábola do Bom Samaritano, que preconiza o dever de ajudar o próximo independentemente da sua classe social, da sua cultura, da sua fé. Ao transmitir-nos esta narrativa, Jesus mostra-nos que, muitas vezes, são os indivíduos com grandes responsabilidades políticas, sociais e mesmo religiosas que ignoram todos os que sofrem à margem da sociedade, à semelhança do sacerdote e do levita que, vendo um homem estendido no chão e extremamente debilitado após ter sido violentado por um grupo de salteadores, decidem passar ao largo. Já o Samaritano, movido pela compaixão que sente assim que se depara com o indivíduo golpeado, responsabiliza-se por ele, cura-lhe as feridas e deixa-o numa estalagem para que recupere dos seus padecimentos. Este momento da parábola surge como o verdadeiro núcleo de toda a encíclica apresentada pelo Papa, por reportar ao momento em que o próprio Jesus Cristo ensinou a um doutor da Lei que a fraternidade ultrapassa quaisquer limites culturais, geográficos, étnicos ou ideológicos.

De facto, compreendemos que a história poderia, eventualmente, ter-se desenrolado em muitas direções distintas, sobre considerações relacionadas com a falsa religiosidade dos primeiros dois transeuntes, ou de encontro a uma condenação intransigente dos salteadores que agrediram o protagonista. Contudo, Francisco evoca que a verdade é de outra importância (4), e procura focar o seu discurso na forma como um samaritano não hesita em ir ao auxílio daquele que mais precisa. Sabemos que os judeus de Jerusalém nutriam uma certa inimizade pelos habitantes da Samaria, e a parábola que nos é revelada mostra que a promoção da fraternidade global tem de começar por um olhar atento a todos aqueles que passam por dificuldades e que se sentem abandonados, sem ter em conta a futilidade de qualquer outro fator externo. O Papa recorda-nos que temos de optar, em todas as circunstâncias da vida, pelo rumo da misericórdia, existindo apenas dois tipos de pessoas: aquelas que cuidam do sofrimento e aquelas que passam ao largo. Retornando à pergunta que nos fizemos anteriormente, e à qual demos uma resposta negativa, reforçamos essa mesma conclusão com esta distinção, pois o dever de conceção de uma comunidade que acolhe todos os homens e mulheres como irmãos e irmãs não está associado apenas às elites influentes que governam o planeta, mas a cada um de nós, cidadãos do mundo.

Acredito, pois, à semelhança de Bergoglio, que chegou o tempo de recomeçar. É imperativo esquecer as inimizades do passado para que, no tempo presente, consigamos promover a harmonia social e internacional por todo o globo, rejeitando os nacionalismos fechados e os patriotismos desequilibrados em nome de um amor-comum à Humanidade. Afinal, está nas nossas mãos tomar as decisões corretas para que as gerações futuras não tenham medo do desconhecido, e não deem continuação aos conflitos que por todo o mundo ainda se fazem ouvir. Só existe um caminho para o reconhecimento de uma fraternidade de alcance global, e é aquele que passa pela solidariedade e pela caridade. Para o seguirmos, teremos de ouvir o apelo que Jesus Cristo nos faz, e só aí seremos irmãos uns dos outros: vai e faz o mesmo (Lc 10, 37)



TODAS AS CITAÇÕES NÃO ENLISTADAS REPORTAM À ENCÍCLIA FRATELLI TUTTI, DO PAPA FRANCISCO


1 FREITAS DO AMARAL, História do Pensamento Político Ocidental

2 HANS JONAS, O Princípio da Responsabilidade - Ensaio de uma Ética para a Civilização Tecnológica

3 BENTO XVI, Caritas in veritate

4 JOSÉ TOLENTINO DE MENDONÇA, Sobre um improviso de John Coltrane

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