Olhar com Justiça para Gabriel Fernandez
- carolinarnedo2002
- 27 de fev. de 2021
- 9 min de leitura

The Trials of Gabriel Fernandez é um documentário norte-americano sobre o assassinato e abuso infantil de Gabriel Fernandez, uma criança de 8 (oito) anos de Palmdale, Califórnia, no ano de 2013. A 26 de fevereiro de 2020, foi lançada na Netflix uma minissérie de seis partes, acompanhando as fases de instrução e de julgamento de um dos processos de abuso infantil mais marcantes da História dos EUA, que contou com centenas de testemunhas, milhares de documentos e cerca de 1200 provas. A imprensa ficou compreensivelmente avassalada com a profundidade dos crimes e com as circunstâncias tão particulares que os rodeavam.
No dia 22 de maio de 2013, os paramédicos chegaram a casa de Gabriel Fernandez, na sequência de uma chamada telefónica do padrasto que, então, alegava que a criança se encontrava inconsciente e não respirava. Quando os bombeiros e os agentes de segurança se deslocaram ao local depararam-se com um cenário de extrema violência e anormalidade. De acordo com o depoimento do médico-legista responsável pela autópsia, a causa da morte de Gabriel Fernandez deveu-se a sequelas de um traumatismo contundente e a negligência infantil.
Durante os 8 (oito) meses em que esteve a viver com a mãe e o padrasto, Gabriel foi torturado, abusado e negligenciado.
A mãe e o padrasto foram acusados de homicídio em primeiro grau, com circunstâncias especiais de tortura. A prova de um homicídio em primeiro grau exige premeditação e intenção de tirar a vida a outrem. A defesa alegou que Isauro Aguirre (padrasto de Gabriel) teve um ataque de raiva isolado. O procurador ripostou que a criança foi vítima de tortura sistematizada, durante os 8 (oito) meses anteriores ao seu falecimento. Logo na abertura da audiência do julgamento, o Procurador aventa que «não são apenas as lesões físicas, é o stress a que esta criança foi sujeita. As pessoas precisam de entender que a violência nunca é só física, é o stress de ser espancado, de não ter brinquedos, de ter vergonha, de sentir medo e culpa o tempo todo. A humilhação e a intimidação são formas de agressão».
Pearl Fernandez, a mãe de Gabriel, foi diagnosticada com transtorno depressivo, incapacidade de desenvolvimento – devido ao uso de drogas desde os 9 anos de idade – transtorno de personalidade, transtorno de stress pós-traumático e anorexia nervosa. Em vários momentos da sua vida, foi vítima de violência doméstica e chegou a ser violada por um grupo de homens, durante a pré-adolescência. Não há apenas prova de que ela - a mãe - assistia à violência, como era, também, participante ativa na tortura e tratamento desumano de Gabriel Fernandez. O falecimento da criança ocorre, pois, na sequência do comportamento do padrasto e da mãe e no período temporal em que se encontra à guarda de ambos, formalmente seus cuidadores.
A dinâmica familiar disfuncional deste agregado é relativamente típica em situações de abuso e negligência infantil. A denominada Síndrome do Bode Expiatório Familiar sobrevem quando uma criança é encarada e tratada pelos restantes membros do agregado como que encasulando a culpa de todos os fracassos da família, gerando, no alvo, sentimentos profundos de vergonha, culpa e arrependimento. Todos nós, seres humanos, pelo menos na infância, dependemos de figuras cuidadoras. Se a relação correr mal, se o bebé chorar e não houver resposta, se for deixado em estado de fragmentação, necessidade ou fome, durante muito tempo, é-lhe impossível fazer a gestão desses sentimentos.
A Professora de Gabriel reportou, diversas vezes, situações suspeitas e, em sede de julgamento, relatou «O Gabriel não parecia zangado com a mãe. Mesmo no final, quando ele estava pior do que alguma vez o tinha visto, fizemos um projeto do Dia da Mãe e eu perguntei- lhe: Queres fazer o projeto? Ele respondeu que sim. No cartão do Dia da Mãe, ele escreveu: a minha mãe é especial, porque é uma mãe amorosa e eu amo-a. Gosto de fazê-la sorrir.»
Astrid Heppenstall Heger, médica especializada em abuso infantil, foi recrutada pela Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia para criar um programa de abuso infantil, numa altura em que os casos se multiplicavam descontroladamente. A ideia inicial era organizar um projeto em que o sistema de saúde estivesse disponível para ver todas as crianças do Condado de Los Angeles, 24 horas por dia e 7 dias por semana, de forma a apoiar o DCF (Departamento de Crianças e Famílias) na tomada de decisões, tendo como prioridade a defesa dos Direitos das Crianças. Elizabeth Bartholet, Diretora do Programa de Defesa dos Direitos das Crianças da Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, assevera que todo o sistema está desgastado e deteriorado, porque é baseado em premissas erradas, ancora-se muito mais na valorização dos direitos dos adultos e dos pais do que nos Direitos das Crianças.
Uma das muitas particularidades deste caso é o facto de os assistentes sociais terem sido acusados pela morte de uma criança sinalizada pelo Sistema de Segurança Social. Em suma, porque foram a casa de Gabriel cinco vezes nos meses que precederam a sua morte e nunca contataram diretamente com a criança.
No decorrer da década de 80, nos Estados Unidos da América, milhares de crianças foram retiradas das suas famílias, por suspeitas de abuso e negligência infantil, sobretudo, na sequência da conhecida “Crise do Crack”. Todavia, o problema agudizou-se, à posteriori, pela inexistência de meios humanos e materiais para abrigar aquelas crianças. Surgiu, assim, a necessidade de criar uma Unidade de Vítimas Especiais de Abusos Complexos de Crianças que aumentasse o nível de resposta da Unidade de Violência Doméstica. Não obstante, na sequência de inúmeros protestos em defesa dos direitos dos pais e tendo em vista a proteção da célula e unidade familiar, a retirada de crianças passou a resumir-se a um recurso raro e de última instância.
Lincoln Saul, supervisor reformado da DCF, denuncia a existência de uma cultura de sigilo no Departamento de Crianças e Famílias: «as burocracias tendem a funcionar para se preservarem e preservarem quem tem o poder. Então, se nós – aqueles que estão num nível mais baixo da hierarquia – tentarmos indicar que há problemas (como, por exemplo, ter 250 crianças a dormir num posto de comando de emergência, porque não há vagas nas instituições), então tornamo-nos problemas e eles fazem o que podem para manter o status quo, preservando a todo o custo o que está estabelecido». O Condado de Los Angeles subcontratou uma empresa chamada Maximus para reger a segurança social de Palmdale (Califórnia). A Maximus é uma empresa, com fins lucrativos, que estabeleceu contratos com o governo, para prestar serviços à população vulnerável. Daniel Hatcher, autor do livro The Poverty Industry, afirma que, «em muitas situações, estas empresas quase se tornaram governo. As pessoas já ouviram o termo: complexo industrial militar, no entanto, a maior parte desconhece este enorme complexo industrial da pobreza. Por vezes, é a mesma empresa. A Northrop Grumman, para além de construir tanques de guerra, também está a ganhar milhões em contratos para governos estatuais que devem servir os pobres. Mas o seu foco não é o que é melhor para a população, é o lucro da empresa».
A avaliação de risco de uma criança é um mecanismo utilizado pela maior parte dos países. Nos países com maior avanço tecnológico, recorre-se, amiúde, a um algoritmo preparado para identificar crianças que se encaixem num determinado perfil com probabilidade de envolvimento futuro no sistema judicial. A verdade é que a Humanidade tem sucumbido à utilização de algoritmos automáticos, em vastas e complexas vertentes da vida, inclusive em decisões de elevado risco humano.
Há cerca de 6 a 7 milhões de crianças sinalizadas por alegados abusos e/ou negligência, todos os anos nos EUA. Tradicionalmente, a triagem era efetuada com base em avaliações instintivas, mas o molde de risco preditivo aconselha uma abordagem mais sistematizada e empírica. Ao cabo e ao resto, o processo é relativamente simples: um funcionário atende a chamada, pesquisa situações anteriores no registo, vê o histórico da criança e dos progenitores e nas opções tem ao dispor a ferramenta de Rastreio Familiar de Allegheny (que utiliza uma técnica estatística – a prospeção de dados – para ver padrões históricos e usa esses mesmos padrões históricos quando há um novo caso para tentar prever o que pode acontecer na atualidade da criança ou família). Há centenas de fatores diferentes que são analisados (como a história social infantil e dos pais, consumo de droga, doença mental e certificado de registo criminal). Quando o algoritmo é aplicado aparece um número entre 0 e 20 (indiciador de baixo risco, risco moderado ou alto risco).
Este sistema tem sido alvo de muitas e duras críticas e há mesmo quem afirme que estamos a criar o equivalente a uma arma nuclear, que pode ser utilizada largamente em campo. As comunidades pobres e minoritárias estão sobre representadas nos dados recolhidos pelos condados. Se os dados, à partida, já são tendenciosos no que respeita a afro-americanos e outras comunidades, como é possível criar uma ferramenta de análise que não agrave o problema? Ademais, embora no condado de Allegheny este sistema seja propriedade do estado, em muitos outros estes algoritmos são geridos por empresas privadas e os dados inseridos não são públicos. Em bom rigor, não há a mínima ideia de como estas empresas estão a decidir a prestação de cuidados que têm um enorme e fundamental impacto no funcionamento da comunidade e da sociedade em geral.
Em junho de 2020, foi concretizado um relatório conjunto de várias agências da Organização das Nações Unidas estimando que 40 150 crianças (entre os zero e os 17 anos) são assassinadas anualmente em todo mundo, a maioria meninos e rapazes (cerca de 28 160), na sequência de abusos e negligência infantil. Pese embora a incerteza do número de crianças sujeitas a violência no ano passado, devido à pandemia de covid-19, no melhor dos cenários, estima-se que ronde os mil milhões de crianças entre os 2 e os 17 anos, ou seja, metade das crianças do mundo. Quase três quartos das crianças entre os 2 e os 4 anos (300 milhões) são regularmente sujeitas a castigos físicos ou violência psicológica às mãos dos seus cuidadores e um quarto das crianças com menos de 5 (cinco) anos vive com uma mãe sujeita a violência doméstica. No que toca à violência sexual estima-se que, em todo o mundo, 120 milhões de meninas e raparigas com menos de 20 (vinte) anos já sofreram um qualquer contacto sexual forçado. Quanto às consequências a longo prazo, as agências da ONU afirmam que os abusos sexuais, físicos ou psicológicos aumentam 30 (trinta) vezes a probabilidade de se cometer suicídio em adulto e 7 (sete) vezes a probabilidade de se estar numa relação íntima com violência, quer como vítima quer como agressor. Aproximadamente 1 670 crianças morreram devido a negligência ou abuso infantil nos Estados Unidos da América, no ano de 2015, sendo que, aproximadamente, 75% delas tinham menos de três anos de idade. Mais de 70% dessas crianças foram vítimas de negligência e 44% foram vítimas de abuso físico que ocorreu com ou sem outras formas de abuso. Mais de 75% dos praticantes de abuso sexual eram pais agindo sozinhos ou com outras pessoas, e, aproximadamente, 25% das mortes foram causadas pela mãe agindo sozinha.
O caso de Gabriel teve um enorme impacto no condado de LA, nas autoridades de segurança e em todas as agências responsáveis pela proteção de crianças e despoletou a criação da “Comissão Fita Azul”, destinada a monitorizar os agentes do Sistema Social Infantil. É facto, e notório, que os assistentes sociais estão sobrecarregados de trabalho, em número de casos e pela frequente complexidade dos mesmos.
O estado atual do Sistema Social Infantil está em crise. Na primeira audição para averiguar possíveis irregularidades no caso de Gabriel Fernandez, Andrea Rich, membro da “Comissão Fita Azul”, solicitou ao Conselho de Supervisores que reconhecesse o estado de emergência do Sistema Social Infantil e sugeriu a criação de um Gabinete de Proteção de Menores, uma entidade que fosse responsável pelas crianças em risco e que tivesse como principal objetivo a definição de prioridades e a implementação paulatina das recomendações da “Comissão Fita Azul”.
Nos anos seguintes à morte de Gabriel Fernandez, mais de 150 crianças em risco, referenciadas pelo Departamento de Crianças e Famílias (DCF), no Condado de Los Angeles, morreram vítimas de abuso e negligência infantil, às mãos dos seus cuidadores.
Sobre o abuso e negligência de crianças, a Doutora Astrid Heppenstall Heger afirma: «acho que o mal está no coração dos indivíduos. E vê-se o mal, todos os dias, quando se é médica especializada em abuso infantil. Também se vê raiva, frustração e pobreza. Mas acredito que o mal supremo no mundo é saber, ver e sentir o que está mal e, mesmo assim, optar por desviar o olhar. E é no desviar do olhar, quando se tem o poder de fazer a diferença, que reside o verdadeiro mal».
Gabriel Fernandez, Anthony Avalos, Naiara Soares Gomes e, também, mais geograficamente próxima de nós, Valentina Bernardo, são nomes de crianças que estiveram aqui por um momento e partiram cedo demais, mas não desapareceram. Continuam aqui, connosco.
Se suspeitar que algum bebé, criança ou jovem está a ser abusado ou negligenciado, contacte gratuitamente a Linha da Criança para o seguinte número: 800 20 66 56.
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