Causas e causas
- Francisco Lopes Matias
- 26 de jun. de 2021
- 9 min de leitura
Atualizado: 27 de jun. de 2021

Escreveu G. K. Chesterton, no seu brilhante Ortodoxia, que “o mundo moderno está, todo ele, em guerra com a razão; e a torre já começou a abanar”.
A verdade é que, cada vez mais, se lermos as notícias, refletirmos mais de dois segundos sobre elas e, acima de tudo, fizermos o cada vez mais rebelde exercício de não aceitar à partida e como certas e indiscutíveis as teses quase hegemónicas dos nossos dias, nos iremos aperceber de que algo de muito estranho se passa com o mundo e com as ideias que o sustentam. A lógica, a verdade e a própria razão já não parecem interessar muito.
Esta semana ficou marcada pela polémica em torno de uma lei aprovada na Assembleia Nacional Húngara (Országgyűlés) que deixa de permitir a promoção ou divulgação a menores de 18 anos de conteúdos que incluam a “representação e promoção de uma identidade de género diferente do sexo à nascença, da mudança de sexo e da homossexualidade”. Na prática, as escolas húngaras deixam de poder abordar estas temáticas (complexas e facilmente deturpáveis) junto de alunos menores de idade. Os filmes e anúncios televisivos ao alcance dos menores de idade também não devem mostrar conteúdos homossexuais.
Na sequência da aprovação pacífica desta nova legislação no Parlamento húngaro, no qual o Fidesz, partido do Primeiro-Ministro Viktor Orbán, tem uma maioria confortável (117 deputados num total de 199), 13 Estados-Membros da União Europeia (Portugal não está incluído por presidir à UE até dia 1 de Julho deste ano) assinaram uma carta de repúdio por esta nova lei.
A reacção das associações LGBT, da comunicação social e dos governos europeus foi instantânea, tendo esta temática inflamado igualmente as redes sociais. A Presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, afirmou que esta norma “é uma vergonha” e escreveu no Twitter: “Acredito numa Europa que acolhe a diversidade, não uma que a esconde das nossas crianças. Ninguém deveria ser discriminado em função da sua orientação sexual”. O porta-voz do governo húngaro não tardou na resposta a Von der Leyen, utilizando também esta rede social para responder: “Cara Ursula, como mãe de sete filhos, certamente percebe a importância de educar os seus filhos nestas matérias sensíveis da forma que achar mais correcta”.
Para além de tudo isto, a Câmara Municipal de Munique decidiu iluminar o Allianz Arena (estádio onde se jogou o Alemanha-Hungria referente à fase de grupos do Euro 2020) com as cores da bandeira arco-íris (símbolo LGBT), o que foi rejeitado pela UEFA, por considerar nociva a mistura entre temas políticos e guerrilhas entre Estados-Membros e o futebol, o que gerou indignação no universo das redes sociais. Do mesmo modo, Viktor Orbán (que assiste assiduamente aos jogos da selecção magiar) cancelou a sua viagem a Munique, tendo ainda ocorrido um incidente no estádio, em que um adepto invadiu o relvado para, em jeito de provocação, ostentar uma bandeira arco-íris em frente aos jogadores húngaros, durante o respectivo hino nacional.
Curiosamente, ao mesmo tempo que o Parlamento Europeu condenava a polémica nova lei húngara, aprovava um relatório (relatório Matic) – que estranhamente (ou não) não teve qualquer eco na comunicação social portuguesa, com as honrosas excepções da Rádio Renascença e da Agência Ecclesia (hoje o Observador também noticiou) – que vem considerar o aborto um direito humano, recomendando ainda aos Estados-Membros que estes limitem a liberdade de consciência dos profissionais de saúde.
Que mundo este tão estranho em que a vida humana é desprezada e o homicídio de inocentes considerado um direito humano; que mundo este tão estranho que explode de indignação (alargando-se esta aos mais altos círculos políticos) por um programa escolar de um Estado-Membro democrático da UE não poder conter conteúdos homossexuais, mas que não diz uma palavra sobre a repressão violenta de uma etnia inteira no interior do país mais populoso do mundo; que mundo este tão estranho em que se sai à rua em defesa de um movimento partidário e por vezes violento e radical (Black Lives Matter), responsável por numerosos incêndios, feridos e até mortes, ao mesmo tempo que os países mais desfavorecidos (a maioria deles em África) não têm acesso a educação, alimentação e, mais recentemente, a este bem precioso que é a vacinação.
Se os grandes politólogos modernos têm algo em comum, é a tese de que a política nos dias de hoje (em especial, no mundo ocidental) se faz de causas e de grupos, definidos por identidades muito próprias. Nascem partidos animalistas, ambientalistas, anti-imigração, anti-Europa, anti-corrupção, piratas e anti-regulação online, independentistas ou anti-independentistas, federalistas europeus, anti-touradas ou pró-mundo rural, etc. Cada vez mais os partidos, da Direita à Esquerda, deixam de lado uma visão holística, abrangente e coerente da sociedade como um todo para se concertarem em micro-causas, os chamados temas fraturantes. É neste contexto que uns e outros, cada vez mais bipolarizados, se vão dividindo dicotomicamente, escolhendo e rejeitando causas. Neste sentido, como nota o Professor Jaime Nogueira Pinto na sua obra-prima Bárbaros e Iluminados, “nos marxismos reinventados pelas novas esquerdas (...) manteve-se a relação de poder opressor-oprimido, mas mudaram os protagonistas: brancos-negros; homens-mulheres; heterossexuais-homossexuais ou de sexualidade alternativa; identitários-globalistas; religiosos-livre pensadores; utópicos-populistas”.
Discutir, nestas dicotomias e em muitas outras, até que ponto vai a realidade e a partir de quando esta se torna meramente ideologia seria uma discussão muito interessante, mas não trataremos disso neste artigo. Façamos então o seguinte exercício: admitindo que o mundo moderno é cada vez mais um mundo de causas, defendidas com unhas e dentes por quem as considera fundamentais, concentremo-nos então em alguns factos que, infelizmente e por desconhecimento ou interesse em ocultar (acredito ou quero acreditar que por desconhecimento), não têm a atenção mediática que merecem. Apresento então algumas propostas de causas a serem tidas em atenção e defendidas por todos:
Em primeiro lugar, uma causa que é muito cara a muitos, mas muito mal compreendida por ainda mais, é a luta contra o aborto e, apesar de alguns pensarem que se trata de um direito humano, a verdade é que é difícil conceber que ser morto com semanas de vida e absolutamente inocente seja um direito de alguém, quanto mais de todos os cidadãos do mundo. Todos os anos são realizados no mundo mais de 40 milhões de abortos, o que significa, “preto no branco” e sem eufemismos, que há 40 milhões de seres humanos cruelmente assassinados anualmente, e, na maioria dos casos, legalmente. Dados da OMS de 2020 indicam que o aborto foi a causa de morte de 42.6 milhões de pessoas, mais do que o somatório de mortes causadas por todas as doenças cardiovasculares (17.9 milhões), o cancro (8.7 milhões), a COVID (1.8 milhões) e a HIV/SIDA (1.7 milhões) juntas.
Em 2019 (últimos dados que temos disponíveis), foram realizados em Portugal 14.928 abortos, ou seja, utilizando estes dados, são feitos em média no nosso país 41 abortos por dia, o que significa que, por semana, era possível abrir uma escola para quase 300 alunos, o que só não ocorre, porque estes seres humanos concebidos como todos os outros são assassinados antes de, como todos os outros, poderem ver a luz do dia. De maneira a termos uma pequena noção do que estes quase 15.000 bebés abortados significariam para a natalidade desse mesmo ano de 2019 (em que nasceram em Portugal cerca de 87.000 crianças), basta somarmos estes dois números, que nos daria um total de praticamente 102.000 nascimentos, o maior número desde 2008 e certamente um grande passo para combater a crise demográfica que se abate sobre a Europa e Portugal.
Dizia Santa Madre Teresa de Calcutá em 1994 que “o grande destruidor da paz hoje é o aborto, porque é uma guerra contra a criança, um homicídio directo de crianças inocentes, assassinadas pela própria mãe”. Mas esta é a cultura de morte que estamos cada vez mais a experienciar (e a promover) no nosso mundo, que se quer supostamente mais fraterno, justo e igual. Como é que é possível querer a paz no mundo e exigir depois leis que permitam entrar em guerra não só com a vida, mas com a vida de inocentes e indefesos? Como é que é possível a alguém opor-se firmemente à pena de morte para pedófilos ou assassinos (e bem, porque a vida humana é sagrada), mas depois apoiar e incentivar a pena de morte para bebés com centímetros de tamanho e gramas de peso cujo crime imperdoável foi, na sua larguíssima maioria, não serem desejados pelos pais? Porque é que não se hasteiam bandeiras com um bebé ou contra o aborto ao lado ou por cima das bandeiras arco-íris? Qual é o critério, qual a razão, onde estão o amor e os direitos humanos no meio disto tudo?
Por outro lado e mudando o tema, como portugueses e como seres humanos, não devíamos dormir tranquilos enquanto a situação de terror e medo que se dá em Cabo Delgado não encontrar um fim. Desde 2017, grupos terroristas islâmicos radicais (Al-Shabaab) têm provocado o verdadeiro terror nas aldeias e vilas do norte de Moçambique. Isto gerou até hoje milhares de mortos, perto de um milhão de deslocados e refugiados e uma tragédia humanitária de proporções dantescas. No norte de Moçambique faltam alimentos, casas e abrigos, roupas e outros bens essenciais, cuidados de saúde dignos e respostas escolares e educacionais imediatas e urgentes para as mais de 350 mil crianças deslocadas. Estes falantes de língua portuguesa estão a ser diariamente privados do corolário mais essencial dos seus direitos humanos, mas não têm tido a atenção e a relevância mediática que mereciam. A estes, a ONU, a União Europeia e os bem-falantes das redes sociais chegam tarde (se chegarem).
Do mesmo modo, há hoje mais de 340 milhões de cristãos perseguidos – um em oito cristãos – em mais de 50 países diferentes, sendo que a larga maioria (309 milhões) sofrem uma perseguição considerada “extrema”. Trocado por miúdos, isto significa que, actualmente, em pleno século XXI, centenas de milhões de cristãos correm o risco de, pelo mero facto de seguirem a Cristo, serem mortos das formas mais cruéis e violentas. Os estudos sobre a matéria indicam que as perseguições sobem de dia para dia e estima-se que, só no último ano, o número de cristãos mortos foi de 4.761 (o que estabelece uma média de 13 por dia). Do mesmo modo, os cristãos presos sem processo e encarcerados são 4.277 (11 a cada dia) e os cristãos sequestrados atingem um total de 1.710 (uma média de 4 por dia). A título de curiosidade, os cinco países em que a perseguição é mais grave são, respectivamente, a Coreia do Norte, o Afeganistão, a Somália, a Líbia e o Paquistão. Estes dados são da ONG Open Doors e podem ser encontrados no site Vatican News. A comunicação social (mais uma vez, por desinformação ou interesse em não divulgar) não noticia esta perseguição massiva que se perpetua por todo o mundo, sendo que a histeria do Instagram, Twitter e Facebook também não costuma falar destas vítimas.
Importa ainda referir, em jeito de passagem (porque isto é um artigo e não um livro), os milhares de muçulmanos (a minoria étnica dos uigures) colocados em campos de concentração em Xinjiang, na China; as vítimas da fome e da miséria provocada pelo governo socialista da Venezuela; os que na Coreia do Norte, no Irão ou na Arábia Saudita não conhecem o sentido da palavra liberdade; os que na República Centro-Africana ou no Iémen morrem devido a guerras violentíssimas; os milhões de africanos e asiáticos de grupos de risco a quem não chegam vacinas deste Ocidente filantropo; todos os sem-abrigo, causados por esta pandemia ou já existentes anteriormente, e que são ignorados nas ruas, poucas vezes sendo realojados; aqueles que, mesmo com doenças gravíssimas, estão a morrer na ausência de cuidados de saúde devido à péssima gestão da pandemia; as vítimas reais de violência doméstica, de crimes sexuais, de tráfico de seres humanos ou de mutilações em praticamente todos os países do mundo; aqueles que ainda vivem uma vida em tudo semelhante à escravatura (e não é preciso sair de Portugal para ver isto); as mulheres que são forçadas a prostituir-se ou a abortar, etc.
Podíamos continuar a semana toda a enumerar incontáveis causas e milhares de vítimas que não captam o interesse de tantos que, em defesa de certos oprimidos e contra determinados opressores, se revoltam com uma facilidade que por vezes até assusta, porque sempre se ensina que se deve primeiro conhecer e só depois tomar uma posição.
A este mundo cada vez mais de causas falta por vezes escolher melhor as causas a apoiar. É perturbante ver como pessoas tão conscientes, sensíveis e supostamente informadas não se apercebem (ou preferem não se aperceber) de tantas injustiças e perseguições por esse mundo fora, sempre com a certeza de que o que foi escrito e lembrado neste artigo não é nada, mas apenas uma gota de água num imenso Oceano.
Por vezes, parece que só nos lembramos do que (e de quem) nos queremos lembrar. E, recuperando um dos mais famosos aforismos de George Orwell no seu imperdível Animal Farm (é impossível deixar de referir Orwell), “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”.
Por último, escrevo este artigo neste mítico fim-de-semana em que o desconfinamento recua um pouco por todo o país e em que a Área Metropolitana de Lisboa está interdita e os restaurantes encerram à hora de almoço. Mas – boas notícias – o Presidente da Assembleia da República (segunda figura do Estado), Dr. Eduardo Ferro Rodrigues, mobilizou-nos a todos para irmos apoiar a selecção nacional a Sevilha. Portanto: ir ao Alentejo passar o fim-de-semana? “Nem pensar, olha o Covid, tem cuidado que isto está cada vez pior. Ficas em casa e não refilas!” Ir ao coração da Andaluzia encher as ruas e o estádio para ver Portugal no Euro 2020? “Ah pois claro! É um dever patriota de primeiro grau. E não te preocupes, que o bicho vê que és tuga e foge!” É caso para dizer: Para Sevilha, rapidamente e em força!
E já agora, que depois de excelentes 90 minutos de futebol contra a selecção número 1 do ranking FIFA (isso não interessa para nada, que nós somos Portugal!), possamos voltar para casa com os quartos-de-final no bolso (e sem Covid, de preferência).
O autor não escreve em conformidade com as regras do novo Acordo Ortográfico.
Infelizmente há pessoas que ainda não percebem que não se deve justificar erros com erros.
Como a fome em África não tem tempo de antena em Portugal, a comunicação social não pode abordar a aprovação de uma lei húngara que proíbe a abordagem da homossexualidade junto de crianças e adolescentes. Realmente, qual é o sentido que faz ensinar as crianças a respeitar e aceitar os outros como são desde pequenos? Que seria! Ainda formamos cidadãos informados e éticos. Deve ser demasiado traumático para as crianças falar sobre ter dois papás e claro as crianças com pais homossexuais que se aguentem.
Aparentemente, temos de agir contra todas as causas injustas no mundo. Temos? Vale a pena pensar sobre isto. Como “cidadãos…