Eutanásia? Não, obrigado. A meio de uma pandemia? Desumano!
- Francisco Lopes Matias
- 29 de jan. de 2021
- 9 min de leitura

Hoje é um dia muito triste para Portugal. Verificaram-se, nas últimas 24 horas, 13 200 novos casos de Covid-19, sendo que mais 278 pessoas faleceram, o que constitui um dos piores registos de mortalidade até hoje registados desde que começou a pandemia. Mas há um outro dado, talvez desconhecido da maioria dos leitores, que confere um tom ainda mais negro ao dia 29 de Janeiro de 2021: é que hoje a Assembleia da República aprovou, com uma maioria relativamente expressiva dos votos, a lei que permite a despenalização da eutanásia.
Ou seja, depois de quase um ano de pandemia, de dois confinamentos, do actual colapso do SNS, de quase 300 mortes (só por Covid) diariamente, de um total de 698 583 infectados e 11 886 mortos desde o início da crise sanitária e de mais uma dúzia de dados altamente desmoralizadores do ponto de vista da saúde pública, o Parlamento decidiu aprovar a eutanásia. Para percebermos melhor que significado pode isto ter, façamos juntos o seguinte raciocínio:
Se hoje foram verificados os esforços hercúleos de tanta gente, que perdeu o emprego e a possibilidade de sustento da família, que viu o seu negócio falir e que se encontra hoje sem dinheiro para pagar as contas mais básicas, como a renda da casa ou a própria alimentação dos filhos; isto acontece por um só motivo: para salvar vidas.
Se as crianças não têm aulas presenciais, o que prejudica consideravelmente (segundo a esmagadora maioria dos estudos sobre a matéria) o seu processo de aprendizagem, durante tempo indeterminado, ficando algumas sem aulas e não tendo grande parte delas um computador que lhes permita acompanhar devidamente os professores e realizar as tarefas pedidas; isto acontece por um só motivo: para salvar vidas.
Se os jovens deste país não podem ir a festas, tomar café juntos, frequentar discotecas e bares, estar com os amigos e até com a própria família; se não podem viajar livremente pelo país e pelo planeta, perdendo algumas das experiências mais espectaculares da juventude e mais definidoras da sua personalidade; isto acontece por um só motivo: para salvar vidas.
E se os mais velhos desta velha Nação não podem combinar “jogatanas” de cartas, visitar os netos de que tanto gostam, os museus que tanto apreciam e os espectáculos artísticos que lhes enchem as medidas, não tendo sequer direito a um enterro ou funeral digno, acompanhado dos seus entes mais queridos; isto acontece por um só motivo: para salvar vidas.
Se os católicos deste país não se podem confessar nem comungar, estando privados da Missa (o momento mais importante da sua fé e, supostamente, da sua vida); se os namorados deste país não podem visitar a sua namorada ao outro lado da cidade; se grande parte dos trabalhadores não podem trabalhar, ficando isentos de sustento para a sua família; se os portugueses não podem circular livremente pelas ruas do seu Portugal sem terem medo de estar a cometer um acto ilegal; isto acontece por um só motivo: para salvar vidas.
Mais assustador ainda: se doentes crónicos ou de outras patologias graves, como o cancro, por exemplo, são privados de tratamento no SNS, postos no fim de filas de espera que duram anos; se pessoas idosas, frágeis e débeis são retiradas do seu ventilador (morrendo imediatamente), para dar lugar a um infectado mais jovem e saudável; se milhares de pessoas infectadas com outras doenças não puderam ir ao hospital, muitas vezes morrendo em casa, por medo, incompetência ou falta de médicos ou ambulâncias; isto acontece por um só motivo: para salvar vidas.
Por último, se há profissionais de saúde a trabalhar há 11 meses mais de 100 horas por semana (sim, 100 horas semanais significam mais de 14 horas diárias de trabalho, A CONTAR COM SÁBADO E DOMINGO), sujeitos à pressão de lidarem com a morte de centenas de pessoas e o desespero de outras tantas todos os dias; se estes estão, em muitos casos, há quase um ano sem abraçar os filhos e os esposos, sem jantar em casa mais do que quatro ou cinco vezes (em 11 meses!); se estão num stress e pressão emocional sem igual, muitas vezes à beira do colapso psicológico; se fazem horas extraordinárias sem uma remuneração justa e se arriscam todos os dias a sua própria vida para salvar a vida dos outros, com uma coragem de soldados em tempo de guerra, uma abnegação digna dos maiores santos e um sentido de sacrifício dos mártires; isto acontece por um só motivo: para salvar vidas.
Em suma, se a nossa vida mudou (para pior) nos últimos meses e se aquilo que era um dado adquirido antes passou hoje a ser uma miragem inalcançável, limitada por leis restrictivas de direitos, liberdades e garantias como em nenhum outro momento da nossa (já longa) democracia; isto acontece por um só motivo: para salvar vidas.
Ora, os mesmos que há 11 meses pedem e exigem aos portugueses que fiquem em casa, que se desumanizem, que abdiquem do essencial das suas vidas e que sofram como nunca nas últimas décadas, porque “todas as vidas são dignas e têm de ser salvas” (frase do Primeiro-Ministro António Costa), foram justamente os responsáveis directos por acelerar a aprovação de uma lei que despenaliza a eutanásia, ou seja, a morte a pedido. Afinal, o que querem, salvar vidas ou matá-las?
Que os portugueses não se esqueçam nunca destes partidos: PS (menos 9 deputados que votaram contra), BE, PAN, PEV, IL, 14 deputados do PSD (entre os quais Rui Rio) e os não inscritos, nomeadamente Joacine Katar Moreira. Estes foram aqueles que, na pior semana da pandemia em Portugal, em que mais gente foi levada por este vírus que há um ano combatemos, tiveram o desplante e a falta de vergonha e humanidade de dizer que para uns, para os mais vulneráveis e frágeis, o Estado só tem uma palavra: morra. Ao mesmo tempo que garantem lutar pela vida de todas as vítimas da pandemia, mostram desprezar cobardemente milhares de seres humanos, para os quais a única resposta que apresentam é a mais fácil, a morte “medicamente assistida”.
Destas pessoas, o Estado desiste de lutar. O que propõe não é lutar até ao último suspiro do doente pela vida dele, contra a solidão dos que perderam os que mais amam, contra as dores indescritíveis das doenças agudas e difíceis, contra o sofrimento psicológico e espiritual de quem perdeu o motivo para viver. Para estes, a palavra que devemos dar é de esperança, de consolo, de ajuda e de presença, de dignificação da vida que está perante nós. Para aqueles que são vítimas de doenças ditas incuráveis, de sofrimentos difíceis de descrever e das mais graves condições de saúde física e mental, que muitas vezes os levam a pensar na eutanásia, o Estado e os profissionais de saúde devem, como fizeram e fazem diariamente com os doentes Covid, batalhar contra a doença com todas as suas forças, lutando pela pessoa até ao seu último suspiro. Ao invés disso, a solução que apresentam, sob o manto de um falso sentimentalismo, é matar a pessoa que sofre.
Como dizia a médica de cuidados paliativos e ex-Deputada da Nação, Dra. Isabel Galriça Neto, “a eutanásia não acaba com o sofrimento, mas com a vida das pessoas que sofrem”. Porque as pessoas não querem morrer, querem deixar de sofrer. E é nisto, e só nisto (porque mais não é competência do Estado), que o Estado devia concertar as suas “baterias”, em garantir que todos têm direito a uma vida digna, da concepção à morte natural.
Mas pior, a eutanásia dá um sinal que, tanto do ponto de vista jurídico como na perspectiva médica, é absolutamente impensável, o de que há vidas humanas que podemos matar e outras que não. A Constituição da República Portuguesa é muito clara, no seu artigo 24.°, n.°1, que dispõe que "a vida humana é inviolável". Ora, o que se lê neste artigo da Lei Fundamental não é que a vida humana é quase inviolável, sendo violável até às dez semanas do feto ou a partir de um certo ponto de sofrimento ou de doença. O que a Constituição protege é a Vida na sua totalidade, não algumas vidas, mais desenvolvidas ou mais saudáveis. Até porque, em boa verdade, a vida é o mais inviolável dos direitos ditos invioláveis, por dois motivos. Em primeiro lugar, nenhum dos outros direitos faz sentido sem a vida: seria absurdo pensar na integridade física ou moral de um morto, na liberdade religiosa, de consciência e de culto de um morto ou na propriedade privada de um morto. Um morto não é, na verdade, titular de direitos, como enuncia o artigo 68.°, n.°1 do nosso Código Civil, “a personalidade [jurídica] cessa com a morte”. Por outro lado, com o término da vida terminam também todos os restantes direitos, estabelecendo-se assim uma relação hierárquica e de dependência entre todos os demais direitos e o direito à vida, que lhes permite um campo de aplicação.
Por esta ordem de razões, morrer não é, strictu sensus, um direito. Morrer é uma fatalidade, algo inevitável que tocou, toca e tocará a toda a gente. Mas exigir ao Estado e aos profissionais de saúde que matem algum cidadão, mesmo que a pedido deste, não constitui nenhum direito, mas a mais grave afronta ao próprio Direito, que se orienta para a justiça e para a dignidade humana, cujo principal expoente é o direito inviolável de todos à vida.
Todavia, não é só no campo da moral e do Direito que a eutanásia encontra obstáculos à sua aplicação; também a nível médico e científico a “morte medicamente assistida” é vista como desnecessária e errada. Para isto basta lembrar que todos os pareceres que a Assembleia da República pediu, em Fevereiro passado, sobre esta matéria, foram negativos. Destes podemos destacar aqueles da Ordem dos Advogados, do Conselho Superior da Magistratura, da Ordem dos Enfermeiros, da Associação Nacional de Cuidados Paliativos, do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e da Ordem dos Médicos. Coisa pouca, portanto!
Assim, percebemos que os médicos (justamente aqueles que se verão obrigados a aplicar a eutanásia na prática) se recusam a aceitá-la e, em muitos casos, a aplicá-la, como é o caso da LUZ Saúde ou da CUF Saúde. Alguns dos argumentos utilizados são: 1) o facto de ser impossível definir um sofrimento como “insuportável” (até que ponto é que há critérios externos e objectivos para qualificar algo tão pessoal como o sofrimento de alguém?); 2) não ser, em boa verdade, correcto considerar a morte como inevitável devido à existência de uma “doença incurável”, na medida em que todos os dias se descobrem novos medicamentos e curas para doenças que anteriormente não apresentavam uma solução; 3) a clara contradição entre a aplicação concreta da eutanásia e o Juramento de Hipócrates, que os médicos juram cumprir e que dispõe, na versão adoptada pela Associação Médica Mundial e disponível no site da Ordem dos Médicos, que estes “guardar[ão]respeito absoluto pela Vida Humana desde o seu início, mesmo sob ameaça, e não far[ão] uso dos [s]eus conhecimentos Médicos contra as leis da Humanidade”.
Deste modo, percebemos que a opinião dos especialistas não parece muito favorável à despenalização da eutanásia, de modo que (e não muito surpreendentemente) se o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa promulgar a lei hoje aprovada, Portugal será apenas o quarto país na Europa e o sétimo no mundo a despenalizar a morte medicamente assistida, sendo que nos dois casos mais famosos do “Velho Continente” já se verificaram casos alarmantes da tão falada “rampa deslizante”, como prova a recente discussão, na Holanda, em torno de permitir a disponibilização de um comprimido suicida para maiores de 70 anos que se encontrem “cansados de viver”. Na verdade, para termos uma pequena imagem do cenário, 4,2% das mortes registadas na Holanda em 2016 aconteceram por eutanásia. Certamente nos quatro anos seguintes este número foi ainda maior. É isto que queremos em Portugal?
Por último, é de lamentar a arrogância e obscuridade de todos os partidos que estão envolvidos na aprovação desta lei. Desde pedir pareceres e ignorá-los, porque o resultado não lhes agrada; suprimir a liberdade de expressão dos cidadãos ao recusar sequer discutir seriamente uma iniciativa popular de referendo que contou com mais de 95 mil assinaturas; aprovar em Fevereiro a primeira versão de uma lei em apenas três semanas, recusando o debate público e não esclarecendo os cidadãos sobre a matéria (a maioria dos cidadãos não tem conhecimento de que mais de 70% dos portugueses que necessitam de cuidados paliativos não têm acesso aos mesmos, sendo que poucos sabem a diferença entre eutanásia, distanásia ou suicídio medicamente assistido); até ao ponto dificilmente qualificável de, perante o caos em que se encontra Portugal e o SNS neste Janeiro de 2021, em que as mortes se multiplicam como em mais nenhum país do mundo (somos o país com mais mortos Covid por um milhão de habitantes no mundo inteiro!) de se propor “pela calada” a aprovação de uma lei que apresenta o homicídio institucionalizado como a solução desejada para o sofrimento humano e para a doença. É desumano. Ou como parece preferir dizer a Ministra da Saúde Marta Temido, “é criminoso, é criminoso”.
Regresso assim às palavras com que comecei este texto: hoje é um dia muito triste para Portugal, porque os nossos políticos (os 136 deputados que votaram a favor e os 4 que se abstiveram) deram ao país o sinal de que há vidas que valem mais do que outras, de que a resposta do Estado a quem se encontra em sofrimento não é sempre cuidar dos doentes e lutar pelas suas vidas, mas pura e simplesmente desistir deles e seguir o caminho mais fácil. Os nossos deputados resistiram à moral, aos apelos da sociedade civil, ao bom senso e até à própria ciência para levar a bom porto uma lei que dá mais um passo rumo a uma cultura moderna de morte da qual é cada vez mais difícil fugir, que se ofende e escandaliza com as questões mais minuciosas, mas que promove o assassínio dos mais vulneráveis, seja por ainda não serem bem seres humanos ou por já não serem verdadeiramente pessoas. Em pleno pico da pandemia, em que tantos tentam salvar o máximo de vidas possível, aprovar a eutanásia é um acto meramente ideológico e de uma cobardia e desumanidade como há muito não víamos. Porque podemos dar as voltas que quisermos, mas, no fim do dia, praticar a eutanásia é matar um ser humano. E um Estado que submete e propõe aos seus cidadãos a eutanásia é um Estado homicida. E fá-lo na pior altura da pandemia. É mesmo isto que queremos?
O autor não escreve em conformidade com as regras do novo Acordo Ortográfico.
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