Mais do que nunca, amanhã é Natal
- Francisco Lopes Matias
- 23 de dez. de 2020
- 9 min de leitura

Há uns dias, recebi da minha avó um daqueles vídeos reencaminhados vezes sem conta no WhatsApp, que, por acaso ou inspiração divina, decidi abrir e ver. Ora, qual não foi o meu espanto quando percebi que não se tratava de um qualquer discurso inspirador ou de um daqueles vídeos de pseudo-médicos (normalmente brasileiros) com alguma teoria da conspiração sobre a pandemia de Covid-19, mas de uma música, em inglês, que dava pelo nome de “Onde está a fila para ver Jesus?”. Nesta melodia, que até achei ter um ritmo interessante, a intérprete chamava a atenção para o facto do mundo moderno (maioritariamente ocidental), imerso na corrida aos supermercados e aos presentes, se esquecia do essencial, de dar tempo a Jesus, que nasce para todo o mundo.
2020 foi, a todos os níveis, um ano muito difícil. A pandemia da Covid-19 já atingiu a saúde de quase 80 milhões de pessoas no mundo inteiro e ceifou a vida de mais de 2 milhões de seres humanos. Alguns defendem que este foi o ano mais difícil desde o fim da Segunda Guerra Mundial; outros descrevem a crise económica iniciada pela pandemia como a mais aguda desde o Crash de 1929 e a Great Depression; uns terceiros, apocalípticos, preveem um futuro em que a máscara e as restrições sanitárias farão parte do quotidiano; uns últimos enchem a internet de frases motivacionais sobre dar sentido à vida e valor às relações. Enfim, se há algo que é consensual entre todos é que o ano que se aproxima a passos largos do seu término foi um período marcante e que deixará certamente marcas.
No entanto, depois de dez apocalípticos meses de pandemia, estamos a um dia daquela que, para muitos, é a mais bonita festa do ano: o Natal, que, embora muito diferente de anos passados, será para muitos a luz de que precisam, a esperança de algo melhor que está por vir e de uma transformação real. Ora, foi em condições semelhantes que ocorreu o primeiro Natal, há mais de vinte séculos, quando o Menino Jesus nasceu, no meio de enormes adversidades e em condições adversas.
Este ano - em que muitas famílias não se vão poder juntar para celebrar o Natal, em que tradições podem ser quebradas (talvez pela primeira vez), em que alguns terão perdido um familiar ou um amigo - parece-se consideravelmente com a cena do Natal original: um presépio pobre, numa manjedoura improvisada, que deixava ao invulgar Nascituro uma simples palhota e que não permitia ao pai de família, São José, dar sequer um lar digno à sua esposa e ao Menino a seu cuidado. Este Natal de 2020, como o primeiro de todos, parece triste, parece um fracasso. Jesus identifica-Se, então e mais do que nunca, connosco.
O Natal é sem dúvida uma época que enche o coração de todos, dos mais velhos às crianças. Os mais velhos felicitam-se, porque reúnem toda a família (muitas vezes é a única vez no ano que todos se unem) à volta da mesa e experimentam os risos, as conversas e a paz daqueles que mais amam, havendo não poucos casos em que o Natal é a altura em que se esquecem e ultrapassam zangas e diferendos familiares, voltando toda a família às raízes (tanto físicas, porque muitas vezes os jantares e almoços de Natal são na terra de origem dos avós; como sentimentais, porque se regressa ao essencial, à união da família). O ensaísta e escritor norte-americano Hamilton Wright Mabie apontava com notável expressividade esta dimensão natalícia: “Bendita seja a data que une todo mundo numa conspiração de amor!”
Do mesmo modo, as crianças vivem a magia de acreditar nas mais bonitas histórias e ficções. O Natal é o tempo em que os sonhos das crianças se concretizam. Em que são felizes. A propósito da dimensão encantadora desta época, Charles Dickens, entre outras obras autor do intemporal Um Conto de Natal, afirmou que o Natal “traz de volta as ilusões da infância, recorda ao idoso os prazeres da juventude e transporta o viajante de volta à própria lareira e à tranquilidade do seu lar”. O próprio São Padre Pio de Pietrelcina escreveu que “todas as festas da Igreja são lindas. A Páscoa, sim, é a glorificação. Mas o Natal tem uma ternura, uma doçura infantil que me conquista o coração”.
E se na fantasia do Pai Natal o que há é a impressão de que somos amados e queridos por um ser superior e quase omnipresente e omnisciente (que nos recompensa materialmente, é certo, mas que também transparece carinho e amor por todas as crianças e adultos); o que acontece com Jesus Cristo é o próximo passo dessa crença, que deixa de ser infantil e passa a ser adulta, dando pelo nome de fé. A fé num Deus que nos ama e que também nos presenteia no Natal, não com brinquedos ou com algo físico, mas com o Seu infinito amor, que tudo transforma.
Contra o materialismo do Pai Natal e das filas intermináveis dos centros comerciais, muitos proclamam que o Natal é mais tempo de dar do que de receber. Mas a verdade é que não: a tónica da época natalícia está, sobretudo, no receber. Não nos gadgets, brinquedos, roupas e dinheiro que nos oferecem, mas no receber de um Deus que não só dá, mas que vai muito mais longe, ao dar-Se a Si mesmo.
É verdade que no Natal, para além dos presentes, da família e do Pai Natal, nós celebramos o nascimento de Jesus, mas a verdade é que há algo ainda maior, o que ocorre é ainda mais extraordinário: no Natal, lembramos um Deus que Se fez homem, que encarnou e que Se quis unir perfeitamente a nós. Muitas vezes nós não queremos o outro, não acolhemos o outro, não desejamos o outro, mas também por vezes não nos queremos a nós, não nos acolhemos como somos e não desejamos ser plenamente aquilo a que fomos chamados a ser, mas Deus quis isso tudo. Ele quer-nos infinitamente, ama-nos infinitamente. A nós e a todos os que existem e já existiram. Deus ama infinitamente aquele vizinho de quem não gostamos, aquele colega que nos irrita, aquela senhora que achamos ser arrogante e mal-educada. Deus veio à terra para nos dizer que quer ser como nós, para que nós possamos ser como Ele.
Ele desceu do Céu para esta terra; escolheu a Virgem Maria para nela repousar; nasceu miserável num estábulo ao ar livre em Belém, rejeitado por toda a cidade; fugiu em bebé para o Egipto porque era perseguido até à morte pelos governantes da época; regressou a Israel (Nazaré) e durante anos acompanhou o simples e justo José no ofício carpintaria (sim, Jesus era um humilde carpinteiro e não um empresário de sucesso ou um político de craveira); depois, sabendo que era a hora de cumprir a Missão a que o Pai O chamara, foi baptizado por João Baptista e percorreu as terras da Palestina a fazer milagres, a curar pessoas doentes, a acolher os leprosos, os miseráveis e as prostitutas, e, mais importante do que tudo o resto, anunciar o Evangelho, a Boa Nova que havia de salvar a humanidade.
Depois, mal compreendido e odiado por muitos - embora seguido por muitos mais - foi condenado à morte de cruz (pena que estava reservada aos piores criminosos), até à qual sofreu flagelações, humilhações e acusações. Chamaram-Lhe blasfemo, assassino, falso profeta; cuspiram-Lhe na cara e chicotearam-n’O até ficar em carne viva, coroaram-n’O com uma dolorosa coroa de espinhos e, por fim, mataram-n’O na cruz. E tudo o que Jesus padeceu foi um presente (podemos dizer natalício) para a Humanidade; foi para nos salvar do pecado e abrir-nos as portas do Céu, antes fechada pelo pecado de Adão.
E é daqui que brota a alegria inesgotável do Natal, da certeza de sermos amados e acolhidos por um Deus que para nos salvar é capaz de entregar o Seu próprio Filho às maiores tribulações, de um Deus que nasce na forma de um Menino, no escuro e frio da noite. Como dizia o Papa Francisco na sua homilia da Missa do Galo de 2013, “Sois imenso, e fizestes-Vos pequenino; sois rico, e fizestes-Vos pobre; sois omnipotente, e fizestes-Vos frágil”.
Deus morreu para nós para que nós possamos viver para ele, para toda eternidade. Ele veio resgatar-nos. E foi essa a causa da felicidade íntima e profunda de Maria e José, naquela manjedoura desabrigada na noite gelada do nascimento do Salvador. É que, embora tudo à volta lhes parecesse correr mal, brotava do interior do seu coração a certeza de que Deus estava com eles, de que Deus tinha escolhido os seus pobres corações para habitar, o calor das suas almas para Se aconchegar.
A particularidade da fé cristã é que não temos apenas um Deus infinitamente bom que rege tudo “lá de cima”, mas para além disso uma divindade que Se faz homem, que Se humilha ao ponto de ter uma vida pobre e de sofrimento, ao ponto de morrer connosco e para nós. Neste Natal, Jesus vem ao nosso encontro, mas a verdade é que Ele esteve cá sempre. Nas casas de todos nós durante a quarentena, Ele estava lá; nas unidades de cuidados intensivos onde diariamente milhares de pessoas se encontram a lutar pela sua vida, Ele estava lá; no sofrimento dos que não têm casa e comida, Ele estava lá; nos funerais em que os próprios entes queridos do defunto estavam proibidos de comparecer devido às regras sanitárias, Ele estava lá; em todos os momentos da nossa vida, em todas as conversas, em todos os acontecimentos, em todas as pessoas, crentes ou não, Ele está lá. “A mensagem que todos esperavam, que todos procuravam nas profundezas da própria alma, mais não era do que a ternura de Deus: um Deus que nos fixa com os olhos cheios de afecto, que aceita a nossa miséria, um Deus enamorado da nossa pequenez”, proferiu o Santo Padre, no Natal de 2014.
Esta é, verdadeiramente, a fé cristã. A fé da Igreja não é um conjunto de doutrinas com cheiro a naftalina e perdidas no tempo; não é uma organização poderosa que acumula dinheiro e influências; não é só mais uma das várias religiões do mundo; não é um grupo de hipócritas que vão à Missa e depois são capazes das piores coisas; não é tão pouco um truque de magia que depois de uma comunhão ou confissão elimina todos os nossos problemas. A fé cristã não é mais do que a relação diária e constante com um Deus vivo e Humano, que não está ultrapassado nem morto (como dizia Nietzsche), mas que vem a nós todos os dias na oração e nos Sacramentos, que não desiste de nós, que caminha ao nosso lado onde quer que vamos, que ri connosco quando estamos alegres e chora connosco quando estamos tristes, que assumiu a nossa humanidade para que nós possamos participar na Sua divindade, na alegria incomparável do Céu que podemos começar a experimentar na terra.
E o Natal é isto, é este passo ousado e nada conservador de um Deus que deixa o “conforto” do Céu para se unir a nós na imprevisibilidade e dificuldades desta terra. São Paulo formula, na sua Carta aos Filipenses, esta verdade, escrevendo que “Cristo Jesus, que era de condição divina, não Se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-Se a Si próprio. Assumindo a condição de servo, tornou-Se semelhante aos homens. Aparecendo como homem, humilhou-Se ainda mais, obedecendo até à morte e morte de cruz" (Filip 2, 6-8). E tudo isto por nós e para nós, humanidade por vezes tão ingrata.
Assim, é ocasião para perguntar, como a cantora do vídeo que a minha avó me enviou: onde está a fila para ver Jesus? Qual vai ser a nossa resposta a este Amor que se deu total e gratuitamente por nós? Podemos ao menos lembrarmo-nos d’Ele e agradecer-Lhe, acolhê-Lo neste Seu aniversário?
Aproveitemos esta noite e dia de Natal tão especiais, depois de um ano que exigiu tanto a todos, para estarmos em família e junto daqueles que mais amamos e de quem temos saudades. Aproveitemos os melhores doces do ano e os presentes que talvez recebamos. Tudo isso é bom. Mas não nos esqueçamos d’Aquele que mais nos ama e devido ao qual se celebra o Natal, não deixemos de Lhe dar o espacinho que merece no nosso coração, para que as coisas boas se transformem em verdadeiros motivos para agradecer e as más possam ganhar outra luz e outra esperança. Porque, como lembrou o Papa, “já não estamos sós e abandonados” e “se tomarmos o Menino nos nossos braços e nos deixarmos abraçar por Ele, teremos a paz do coração que jamais terá fim”. Deste modo, “juntamente com os pastores, prostremo-nos diante do Cordeiro, adoremos a Bondade de Deus feita carne e deixemos que lágrimas de arrependimento inundem os nossos olhos e lavem o nosso coração. Porque disto todos temos necessidade” (Papa Francisco, Mensagem Urbi et Orbi de 2015). Não nos esqueçamos também dos que estão neste momento infectados com a Covid-19, dos mais pobres e daqueles que vão passar este Natal sozinhos, dos sem-abrigo, dos imigrantes, dos que enviuvaram este ano ou dos que perderam entes queridos, dos profissionais de saúde, dos que procuram um sentido para a vida e de todos aqueles que estão mais necessitados. No fundo, foi principalmente para eles que Jesus nasceu.
Este Natal é, assim, mais uma oportunidade que Deus nos dá para recomeçarmos, para tentarmos de novo, aprendendo com tudo o que fizemos mal e contando com a Sua ajuda e com a Sua presença para enchermos a nossa vida e a dos outros da paz e da serenidade que tanto ansiamos e que Ele tanto nos quer dar. Este ano foi especial, este Natal sê-lo-á ainda mais.
Um abraço virtual e votos sinceros e sentidos de um Feliz e Santo Natal a todos!
O autor não escreve em conformidade com as regras do novo Acordo Ortográfico.
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