O dilema do voto católico: Trump ou Biden?
- Francisco Lopes Matias
- 1 de nov. de 2020
- 7 min de leitura

Faltam hoje dois dias para as eleições que vão definir o rumo do mundo ocidental (e não só) e há muito que não víamos um acto eleitoral tão polarizado. Até há mesmo quem lhes chame as mais polarizadas eleições presidenciais da História dos EUA.
Por isso, parece-me essencial, como católico e espectador minimamente informado, fazer uma pequena reflexão, absolutamente isenta de autoridade e sem intenção de convencer seja quem for, sobre o modo como um católico pode olhar para estas eleições e posicionar-se (ou não) sobre as mesmas.
Muito se diz e ouve dizer que é inconcebível um católico votar em Trump, ou mesmo preferi-lo ou equipará-lo a Biden. O inverso, na verdade, é também pregado com muita frequência, especialmente nos meios católicos e conservadores americanos. Mas se na “Ocidental Praia Lusitana” este tema é pouco discutido e abordado, a mim parece-me de vital importância dar-lhe a relevância que merece, porque a verdade é que muitas pessoas (e bem) orientam o seu voto tendo como principal base as suas crenças religiosas.
Estamos perante dois candidatos que indiscutivelmente colocaram a sua ideologia e interesses e ambições pessoais acima da sua fé, mas que mesmo assim protagonizam entre si uma relação muito diferente com a religião dos americanos. Se Biden pouco ou nada fala de Deus e das igrejas e se recusa a partidarizar a questão religiosa e a dar-lhe uma considerável relevância; Trump fez da fé cristã uma das suas maiores “bandeiras”, referindo regularmente Jesus Cristo nos seus comícios e aliando-se a múltiplas igrejas cristãs em tópicos fundamentais para as mesmas, como o aborto e a ideologia de género.
Entre os dois verifica-se ainda um interessante paradoxo: se Joe Biden é assumidamente católico, não dando contudo qualquer relevância à sua fé na forma ou no conteúdo das suas medidas; Trump foi baptizado como presbiteriano, mas apresenta-se como o baluarte e legítimo guardião do voto católico, na medida em que defende ser o defensor desta mesma moral.
Quanto ao voto evangélico, 81% (brancos, negros e hispânicos) votaram em Donald Trump em 2016 e as sondagens até apontam para um número mais alto este ano, mas no que respeita aos católicos, a situação é menos homogénea e mais debatida. Numa sondagem desta semana, o voto católico divide-se de uma forma completamente equitativa entre os dois candidatos: 47% para Biden e iguais 47% para Trump, correspondendo os restantes 6% quase todos a indecisos.
É indiscutível que o grande tema à volta do voto católico e religioso nas eleições americanas sempre foi (e 2020 não é excepção) o aborto. E neste tema os candidatos não podiam ser mais antagónicos. Por um lado, Donald Trump é, segundo ele mesmo, “o Presidente mais pró-vida da história dos Estados Unidos”, tendo sido o primeiro presidente norte-americano a participar na Marcha Pela Vida e tendo nomeado para o Supremo Tribunal três juízes conservadores e assumidamente anti-aborto (Brett Kavanaugh, Neil Gorsuch e, mais recentemente, Amy Coney Barrett).
Por oposição, Joe Biden, apesar de se afirmar católico, é assumidamente favorável à legalização do aborto, já tendo manifestado em diversas ocasiões o seu apoio a decisão do Supremo Tribunal, geralmente denominada de Roe v. Wade, que legalizou, em 1973, esta prática a nível federal. A sua candidata a Vice-Presidente, Kamala Harris, é também uma das grandes vozes “pro-choice”, visto que considera o aborto uma questão estrutural de direitos das mulheres, apoiando até o alargamento do período em que é permitido interromper a gravidez, o que a levou a ser acusada, não com clara inverdade, de ser favorável à legalização do aborto até ao fim da gravidez, visto que quando o conservador “The Daily Caller” perguntou a diversos senadores democratas “se havia um ponto a partir do qual o aborto seria considerado imoral”, a democrata não foi directa e inequívoca na resposta: “Penso que cabe à mulher tal decisão e vou manter sempre este pensamento. […] A grávida deve tomar essa decisão com o seu médico, o seu padre, o seu marido”. O que é factual é que Harris se opõe com veemência às leis que impedem o aborto para além das 20 semanas de gestação, como prova o seu apoio à famosa Lei de Protecção da Saúde da Mulher (Women’s Health Protection Act [WHPA]).
Para além disto, a defesa do casamento homossexual e da chamada “ideologia de género” por parte dos Democratas são também outros motivos que levam muitos católicos a votar em Donald Trump, já que estas novas interpretações da sexualidade e dos modelos familiares são explicitamente contrárias à Doutrina da Igreja Católica. Outra razão que “republicaniza” muitos católicos foi a nomeação da juíza Amy Coney Barrett para o Supremo Tribunal, por parte do Presidente dos EUA, que prometeu que iria fazer o máximo para reverter na mais alta instância judicial a decisão que impôs a interrupção da gravidez.
Neste contexto, o actual presidente e candidato republicano referiu-se ao seu adversário como inimigo de Deus e da fé (“Ele é contra Deus, contras as armas, contra a nossa energia”). Mas será que é mesmo assim, que um cristão, e em especial um católico, não tem outra escolha senão votar em Trump?
O que os católicos democratas defendem é justamente o oposto, ou seja, que um católico tem o dever moral de dar o seu voto a Joe Biden, na medida em que o Democrata propõe um sistema de saúde mais universal, um maior respeito pelo ambiente (que nos últimos tempos tem sido uma das principais prioridades da Igreja, principalmente desde a publicação da encíclica Laudato Sí, do Papa Francisco) e uma dignificação substancial da pessoa dos imigrantes ilegais, em comparação com as posições anti-imigração do Presidente Trump.
Mas o que diz então a Igreja? Quem e em que condições deve eleger um catálogo? Para responder a estas perguntas, a Conferência Episcopal dos Estados Unidos (USCCB) produziu um documento (“Faithful Citizenship”), em que orienta os católicos na sua escolha, sendo particularmente feliz e explícita no parágrafo 34:
“Um católico não pode votar num candidato que defenda políticas que promovam um acto intrinsecamente mau, como o aborto, a eutanásia, o suicídio assistido, a sujeição deliberada dos trabalhadores ou pobres a condições de vida subumanas, a redefinição do matrimônio de forma a violar o seu significado essencial, ou comportamentos racistas, se a intenção do eleitor for apoiar essa posição. Em tais casos, um católico seria culpado de cooperar formalmente com um mal grave. Mas, ao mesmo tempo, um eleitor não deveria usar a oposição de um candidato a um mal intrínseco para justificar a indiferença ou a falta de atenção a outras questões morais importantes que envolvam a vida e a dignidade humanas.”
Deste modo, um católico deve, segundo os Bispos dos Estados Unidos e a própria Doutrina Social da Igreja (DSI), votar naquele candidato com o qual mais se identifica ou cujas prioridades (que estejam de acordo com a DSI) mais se aproximem, isto tendo igualmente em conta que a intenção do eleitor não deve ser apoiar um “mal intrínseco”. Por exemplo, um católico pode votar em Trump com o argumento de querer o fim do aborto, mesmo sabendo que o republicano apoia políticas erradas, que podem promover, sob o ponto de vista de alguns, o racismo ou submeter os imigrantes a condições de vida infra-humanas. Deve poder fazê-lo, entenda-se, desde que não tenha a intenção de apoiar as mesmas, aceitando-as apenas como consequência directa de uma escolha, uma espécie de “mal menor”. O mesmo se aplica ao contrário: um católico pode votar em Biden com o objectivo de estender a saúde a todos, aumentar os apoios sociais e dar condições de vida mais dignas aos imigrantes ilegais, mesmo aceitando como consequência inevitável o fomento e possível extensão do aborto e o apoio a modelos de família não tradicionais (e não defendidos pela Igreja Católica), desde que apoiar o aborto, o casamento homossexual e a ideologia de género não seja a intenção.
Na verdade, a excessiva polarização e radicalização dos partidos políticos tem afastado os mesmos da Doutrina Católica, o que se comprova nas atitudes recentes dos actores políticos americanos. Por exemplo, já não é comum ver no Partido Democrata um militante ou candidato pró-vida e pró-família tradicional e nos Republicanos alguém pró-meio ambiente ou pró-imigração. Isto é demonstrativo da falência do sistema político norte-americano, tal como da cada vez mais difícil tarefa que tem os católicos americanos na hora de votar.
Deste modo, um católico deve ter liberdade de voto, na medida em que tem liberdade de consciência. Um fiel não é nenhuma marionete nem tão pouco um acéfalo ou alguém incapaz de pensar pela sua própria cabeça, de modo que justificações que sejam ordens categóricas, mas sem o devido espaço que merece a liberdade de pensamento e a consciência de cada um; sonantes, mas superficiais; bem fundamentadas, mas mal interpretadas; com aparência de bem, mas ausência de boa intenção; não devem ser suficientes para levar ninguém a votar. Nem em Trump, nem em Biden.
O católico deve, assim, votar segundo os critérios de Deus, procurando garantir temporalmente a paz e a justiça social, o respeito pelos direitos fundamentais, a preservação da “casa comum”, a vida de cada ser humano desde a concepção à morte natural, a cooperação entre os Estados e o combate à discriminação (independentemente do critério que a fundamentar).
Mas não pode por isso descurar o dever que também tem de lutar, dentro do possível, por mais do que pela vida terrena. O católico tem de querer que todos tenham a vida eterna e deve por isso privilegiar governos e políticos que facilitem a salvação do seu povo. Devem por isso exigir que haja espaço na política para a religião e que as leis da Administração sejam as mais semelhantes possíveis ao plano de Deus para o Homem.
Em suma, não há candidatos perfeitos - nenhum tem na testa inscrito o nome de Jesus Cristo – e por isso um católico tem de fazer escolhas. Ficar em casa e não votar não é solução, na medida em que é a atitude que mais nos afasta da política e da sociedade, calando o pensamento cristão, que tanto pode ser útil para fazer do mundo um lugar melhor e mais parecido com o Reino de Deus.
É possível ser-se católico e votar em Joe Biden. É possível ser-se católico e votar em Donald Trump. Um católico deve votar, em Trump ou em Biden, movido pela sua consciência. Como diz a Constituição Pastoral Gaudium et Spes, documento fundamental do Concílio Vaticano II, “o homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus; a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado. A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser.” (GS 16).
O autor não escreve em conformidade com as regras do novo Acordo Ortográfico.
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