Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa: 40 anos depois
- Francisco Lopes Matias
- 4 de dez. de 2020
- 8 min de leitura

Na tarde de 4 de Dezembro de 1980, há exactamente 40 anos, caía com estrondo, no bairro das Fontaínhas, em Camarate, um jacto privado Cessna, apenas 26 segundos depois da descolagem no Aeroporto da Portela. A bordo iam, para além dos dois pilotos do aparelho (Jorge Albuquerque e Alfredo de Sousa), o Primeiro-Ministro de Portugal, Francisco Sá Carneiro, acompanhado da sua companheira Snu Abecassis; o Ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa; a sua esposa Maria Manuel Simões Vaz da Silva Pires e o Chefe de Gabinete do Primeiro-Ministro, António Patrício Gouveia, todos defuntos. O avião deslocava-se para o Porto, onde os membros do Governo iriam marcar presença no comício de encerramento da campanha do candidato presidencial da AD, o General Soares Carneiro, que acabou por perder essas eleições para o Presidente Incumbente, o General Ramalho Eanes.
Essencialmente um humanista, Sá Carneiro foi um homem e um político de um enorme carisma, registando a mais alta popularidade, junto dos portugueses, entre os ocupantes eleitos de São Bento nos últimos 46 anos. Vasco Pulido Valente atribui esta boa opinião geral às intenções honestas, firmes e inovadoras do então chefe de governo. “Francisco Sá Carneiro queria mesmo mudar Portugal”.
Todavia, desengane-se quem pense que sempre houve consenso no partido face a Sá Carneiro. De facto, nos anos imediatamente anteriores à eleição da AD, houve uma cisão dentro do PPD/PSD. Por um lado, encontrava-se Carlos Mota Pinto, Primeiro-Ministro do IV Governo Constitucional, que apoiava a ideia de um governo de iniciativa presidencial e com relevância militar, o que inevitavelmente levaria o partido para a esquerda; por outro, a linha de Sá Carneiro, Pinto Balsemão, Viana Baptista e mesmo Pulido Valente, que confrontava o sistema vigente e se centrava no desejo de livrar Portugal do poder militar, o que implicava a extinção do Conselho da Revolução, órgão que impedia o verdadeiro estabelecimento da democracia no nosso país, visto que era formado por oficiais de carreira, com pouca formação política, irresponsáveis e, ainda para mais, não eleitos. Esta última linha, liderada e mobilizada à volta de Sá Carneiro, venceu “arrasadoramente” o Congresso social-democrata em Julho de 1978, controlando desde então os rumos do partido e assumindo, desde logo, um “governo-sombra”, que se mostrava a Portugal como uma alternativa viável e bem pensada, primeiro ao Governo de Mota Pinto, depois ao Executivo de Maria de Lourdes Pintasilgo.
Esta nova face do PPD tinha a perfeita consciência de que seria impensável que a Comunidade Europeia admitisse um membro com um governo vigiado por uma figura militar com semelhantes características. Ora, tanto para promover uma revisão constitucional que eliminasse o Conselho da Revolução, como para iniciar um processo de integração europeia, era preciso unificar a direita. Sá Carneiro percebeu isto como ninguém e era o melhor para liderar este projecto.
A integração europeia e, principalmente, a elevação de Portugal a um país política e economicamente semelhante aos padrões europeus, sempre foram alguns dos maiores objetivos de Sá Carneiro, um dos primeiros a pensar seriamente na hipótese da adesão portuguesa à CEE (actual União Europeia) no pós-Revolução, que se veio a concretizar apenas em 1986. A finalidade era fazer crescer Portugal e enriquecer, não só economicamente, os portugueses, procurando dar-lhes uma qualidade de vida semelhante aos prósperos vizinhos europeus.
Neste contexto, não é de todo irrelevante que o ano em que a AD foi eleita pela primeira vez (1979) foi justamente o ano da primeira eleição da Primeira-Ministra britânica Margaret Thatcher e que o ano seguinte (1980) significou, por um lado, a reeleição da união das direitas portuguesas e, por outro, a escolha de Ronald Reagan como Presidente dos EUA.
E se nos aliados anglo-saxónicos o que explica o sucesso destes movimentos de uma nova direita reformista e de tendência neoliberal é, em grande parte, a crise petrolífera de 1973 e a consequente falência do Estado Providência, tal como o aumento histórico e constante da inflação; em Portugal, a “viragem à Direita” explica-se muito pela “aspiração geral de viver como na Europa Ocidental, que já tinha sido o destino escolhido pelos portugueses para a emigração”, como nota o historiador Rui Ramos.
Face às aproximações claras da esquerda revolucionária nacional às “democracias populares” do Leste Europeu (como a República Democrática da Alemanha, a Polónia, a Checoslováquia ou a Roménia), Estados-Satélites e sob a tutela da União Soviética, o centro-direita de Sá Carneiro, Freitas do Amaral e Ribeiro Telles propunha um modelo diferente, mais próximo das democracias da Europa Ocidental e da América do Norte e com uma ambição considerável de cooperação europeia, materializada no desejo de adesão à inovadora e vibrante CEE.
Assim, a subida da Aliança Democrática ao poder em Portugal (onde ficou de 1979 a 1983) simbolizou a afirmação da direita como a mais importante força democratizadora e reformista deste novo regime democrático. Esta foi a primeira vez que se pensou numa solução não socialista para o País no pós-1974, solução esta que se opôs tanto à extrema-esquerda de Cunhal e de alguns militares como à esquerda mais progressista de Mário Soares, da qual se distinguia pela sua via personalista, não dogmática, social-cristã e mais aberta aos mercados e à iniciativa privada.
Não era uma direita nacionalista, nem a herdeira natural do Estado Novo, mas uma nova direita conservadora-liberal e democrata-cristã, com traços consideráveis de social-democracia e com preocupações reformistas e ecológicas. Uma direita simultaneamente católica e progressista (como mostra por exemplo o ecologismo do PPM e de Gonçalo Ribeiro Telles, o primeiro a ocupar um cargo de Ministro em Portugal com responsabilidades ambientais e de qualidade de vida) e que pautava por um desejo de uma democracia integral e integrada na Europa, sem complexos e sem as amarras do socialismo obsoleto e do poder militar. Esta foi a Direita que Sá Carneiro imaginou para Portugal e foi este o caminho que o seu governo tentou seguir.
Se o 25 de Abril pôs fim à Ditadura e o 25 de Novembro consagrou finalmente a liberdade e a democracia, só com Sá Carneiro e com a Aliança Democrática que apadrinhou é que Portugal teve pela primeira vez um verdadeiro projecto político reformista e modernizador, com o desejo de finalmente evoluir, não só para um país politicamente livre, mas para uma Nação que fosse simultaneamente próspera e enérgica, na busca de um sistema económico que conjugasse a defesa dos mais frágeis e o dinamismo das empresas e dos privados.
A Democracia plena, todavia, só se alcançou verdadeiramente, por um lado, com a Revisão Constitucional de 1982, promovida pela AD, agora de Pinto Balsemão, e que extinguiu finalmente o Conselho da Revolução; por outro, com a extinção das nacionalizações e a reforma de todo o sistema económico, de modo a desburocratizá-lo e a diminuir o peso do Estado na organização económica, medidas estas que se concretizaram na Revisão Constitucional de 1989, desta vez levada a cabo pela maioria de direita de Aníbal Cavaco Silva.
Francisco Sá Carneiro foi um homem coerente e intransigente, nunca negociando aquilo que considerava ser o mais correcto. Em momento algum abdicou dos seus princípios e a prova disso é que estava disposto a sair quando as coisas não corressem como ele queria. Via o poder como um serviço e não se servia do poder e, por isso mesmo, ameaçou que, em caso de se confirmar a reeleição de Ramalho Eanes, se demitiria, visto ter um projecto incompatível com o do Presidente, na medida em que o Primeiro-Ministro tinha o Conselho da Revolução – essa instituição militar e não eleita, suportada pela Constituição de 1976 e que governava a Nação a seu ‘bel-prazer’ e acima da lei e do Governo - como grande inimigo, sendo o Presidente Eanes um militar.
Muito por isso, o então Primeiro-Ministro recusava-se a ‘coabitar’ politicamente com Eanes, ameaçando a demissão em caso de reeleição deste. E foi esta “radicalidade estratégica” que conferia à cara da AD tanto carisma. Nota Paulo Portas que Sá Carneiro foi porventura “o único a ter a capacidade de dizer ‘Mesmo que eu perca muita gente que está comigo, mesmo que o partido não queira, acho que o caminho é por aqui e não por ali. E não vou fazer concessões’”.
Mas não podemos falar de Camarate e do 4 de Dezembro de 1980 sem referir Adelino Amaro da Costa, Ministro da Defesa Nacional do governo da AD e suposto alvo principal do atentado ao Cessna com direcção ao Porto, por alegadamente ter descoberto e se preparar para desmantelar um esquema de venda de armas por parte do exército português ao recém implementado regime ditatorial de teor fundamentalista islâmico do Irão.
Amaro da Costa foi um dos arquitectos da AD e aquele que escreveu o Manifesto Eleitoral da coligação do Centro e da Direita para as legislativas de 1980, que resultaram na obtenção de sensivelmente 48% do voto popular, concretizados em 134 deputados, a mais larga maioria governativa desde a Revolução.
Foi co-fundador e Vice-Presidente do CDS de Freitas do Amaral e um dos principais pilares do Governo de Sá Carneiro e de Freitas. Esteve sempre na “retaguarda”, não tendo o protagonismo do primeiro lugar, mas a responsabilidade, inteligência e estratégia do segundo. Como escreve José Ribeiro e Castro num interessantíssimo artigo no Observador, “[o] Adelino não queria ser outra coisa que não n.º 2 e resistia facilmente ao veneno da lisonja. Definira e sabia qual era o seu papel; e sabia também que era desse papel que o CDS precisava. (...) Camarate foi muito mais duro para o CDS e para Freitas do Amaral do que para o PSD. É muito mais difícil substituir um n.º 2 do que um n.º 1. Quando é o líder que falta, o partido, mais ano, menos ano, acaba por encontrar outro, com mais ou menos bulha – e tudo recomeça. Mas, quando é um “vice”, é muito mais difícil, porque, além de encontrar alguém talentoso, é preciso que esse alguém tenha, ao mesmo tempo, a confiança mútua com o líder e a confiança, o apoio e a admiração das bases. É muito difícil. E pode ser impossível. No caso do Adelino, foi impossível”.
Horas após a morte do seu Vice-Presidente e Ministro da Defesa, Diogo Freitas do Amaral, fundador do CDS e à época Presidente do Partido, fez um emocionante discurso de homenagem, que começou da seguinte forma: “Adelino Amaro da Costa foi fundador do CDS. Foi quem redigiu a nossa Declaração de Princípios. Foi o primeiro porta-voz da direcção do Partido. Foi o nosso primeiro Secretário-Geral. Foi o primeiro Vice-Presidente do CDS. Foi o primeiro Presidente do nosso Grupo Parlamentar na Assembleia da República. Foi o primeiro Deputado do CDS a receber o título de melhor parlamentar do ano. Foi o principal redactor dos textos oficiais emitidos pelo Conselho Nacional, pela Comissão Política e pela direcção do CDS. Foi o fundador do IDL. Foi o principal estratega da AD. Foi o primeiro civil a exercer as funções de Ministro da Defesa Nacional depois do 25 de Abril. Quis o destino que fosse ele também o primeiro, de entre nós a partir para sempre”.
Camarate foi o fim da carreira e da vida de dois dos maiores políticos portugueses do último século. Sá Carneiro, portuense, visionário e humanista; Amaro da Costa, alentejano, democrata-cristão, moderado e sonhador: os dois foram brilhantes cabeças, oradores exímios, pensadores perfeitamente conhecedores do que Portugal era e profundamente entusiasmados com o que podia vir a ser, dois corações enormes, dois homens apaixonados (pela vida, pela política, por Portugal e pelas mulheres que tinham a seu lado), duas presenças que enchiam qualquer sala e qualquer jantar, dois católicos comprometidos com a fé e com a transformação social, dois homens que deram uma nova esperança a este país, dois rostos resplandecentes da nossa política e da nossa sociedade, duas caras da democracia portuguesa, duas personalidades que não queriam um Portugal medíocre, mas um país que enchesse a medida dos portugueses; dois portugueses cujo legado foi muito para além da sua curta vida. Morreram muito cedo e, se não sabemos como seria Portugal se tivessem sobrevivido, temos a certeza de que seria certamente melhor. Cabe-nos fazer-lhes justiça e honrar as suas vidas.
“O Homem é a nossa medida, a nossa regra absoluta, o nosso início e a nossa meta. Sem absoluto respeito por ele não há, não pode haver, democracia verdadeira.”
⁃ Francisco Sá Carneiro, fundador do PPD/PSD e Primeiro-Ministro de Portugal entre 1979 e 1980
“Acredito na capacidade do povo português para construir em Portugal a democracia. Apesar de tudo e contra muitos.”
- Adelino Amaro da Costa, fundador do CDS e Ministro da Defesa Nacional entre 1979 e 1980
O autor não escreve em conformidade com as regras do novo Acordo Ortográfico.
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