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Covid-19 e os governos: até onde podem ir (e estão a ir) os Estados?

  • Foto do escritor: Francisco Lopes Matias
    Francisco Lopes Matias
  • 26 de abr. de 2020
  • 7 min de leitura

Atualizado: 27 de abr. de 2020


Ontem, 25 de Abril, foi um dia em que muitos portugueses celebraram a liberdade e a democracia e, deste modo, é importante olhar para o mundo de agora e tomar alguma atenção ao que tem sido feito e aplicado e como isto se relaciona com aquilo que mais caracteriza o ser humano, a sua liberdade.


Na verdade, usando o pretexto de um combate mais eficaz à pandemia de Covid-19, muitos governos têm aproveitado para pôr em práctica ideias e medidas de controlo mais apertado dos cidadãos e, através do desenvolvimento tecnológico e das oportunidades que este abre, ter acesso aos mais variados dados dos povos, incluindo aqueles que são do foro meramente pessoal.


A propósito desta situação, Snowden fala de uma “arquitectura da opressão” e realmente não é difícil ver em algumas iniciativas governamentais características orwellianas. Mas, então, o que se passa realmente?


Com efeito, parece óbvio a todos (mais ou menos liberais e democráticos) que uma solução de emergência requer uma resposta de emergência (até porque não o fazer seria a causa da morte de muita gente), o que implica, necessariamente, a supressão temporária de algumas liberdades, em nome da saúde pública. Por isso, nenhum Estado no mundo permanece igual, porque tal seria uma total negação da sua primeira responsabilidade, a defesa dos cidadãos. Todavia, esta excepcionalidade conjuntural tem de ter limites, sob pena de subverter a sua verdadeira intenção, que deixa de ser a garantia de saúde e segurança do povo para se transformar no controlo político e social do mesmo.


Infelizmente, muitos governos têm usado a situação actual não para fortalecer as suas democracias, mas, pelo contrário, servindo-se dela para eliminá-las. E têm-no feito das formas mais criativas e preocupantes. Temos, por isso, de saber distinguir muito bem as duas situações. Por exemplo, é verdade que o Governo português declarou um Estado de Emergência provisório, renovado a cada duas semanas, suprimindo algumas liberdades, como a de reunião ou mobilidade, mas fê-lo, em primeiro lugar, por tempo limitado, e em segundo, com a ressalva de que está limitado pela supervisão das autoridades de justiça, como a Procuradoria-Geral da República, a Provedora de Justiça e os tribunais. Ou seja, é um Estado de Emergência excepcional, mas de acordo com a Constituição e com a democracia, devidamente “balizado” e supervisionado pelos magistrados, ao que acresce o facto de não haver qualquer antecedente ou suspeita séria de abuso de poder por parte do executivo de António Costa. Com elevado grau de certeza, mal acabar a pandemia, o Governo português preparará um regresso à normalidade democrática.


Muito diferente é, por exemplo, o caso húngaro, em que o governo de Órban – que, apesar de ter conduzido o país a notáveis resultados económicos e à defesa da vida e dos valores tradicionais, é responsável por um crescente aumento da autoridade do Estado, por uma “musculação” do Regime e das instituições e pela sucessiva eliminação de direitos e liberdades individuais – aprovou um conjunto de medidas que, no mínimo, entram em profunda contradição com os princípios democráticos e liberais, das quais podem ser destacadas a declaração de um Estado de Emergência sem limite temporal, a suspensão das eleições e do Parlamento e consequente governação por decreto e a pena de prisão para notícias consideradas fake news ou rumores, que contrariem a versão oficial do governo e os dados apresentados.


Mas o que não falta é mesmo diversidade e as tecnologias são, logicamente, o meio preferencial de acção, visto que possuem em si um sem número de informações, tanto úteis para conter a pandemia como para controlar os cidadãos. E são imensos os exemplos de medidas tomadas pelos Estados, democráticos e ditatoriais, cada uma mais abrangente do que a outra, embora algumas das soluções arranjadas tenham tido, de facto, imenso sucesso na contenção do Covid-19.


A República Popular da China, por exemplo, criou uma app que reúne todos os dados dos cidadãos (locais onde esteve, o que comprou no supermercado, com quem esteve e com quem falou, dados do telemóvel, reconhecimento facial através de mais de 200 milhões de câmaras de filmar instaladas nas ruas, etc.), reconstituindo então o mais real possível o dia-a-dia dos cidadãos, dividindo-os depois por cores – verde, amarelo e encarnado –, consoante a possibilidade de contágio, sendo que os não verdes ficavam proibidos de fazer tudo. Só quem mostrava o seu verde na app estava autorizado a sair de casa ou a ir ao supermercado, por exemplo. Ora, é verdade que os resultados desta política (mais ou menos credíveis e envoltos em grande escândalo) foram notáveis e o regime chinês declarou a ocorrência de um número ligeiramente inferior a 83.000 casos, o que é extraordinário, anda para mais sendo a origem da pandemia. Mas a custo de quê? De toda a privacidade, direitos e dignidade dos cidadãos, completamente privados daquilo que faz deles seres humanos.


Em Israel, do mesmo modo, o Ministério da Saúde recebeu plenos poderes para aceder aos dados de saúde dos cidadãos (histórico clínico e documentos confidenciais incluídos), tendo também acesso directo à localização de cada telemóvel, que nunca poderá ser desligado, sob pena de disparar um alarme, com fortes possibilidades de acabar numa condenação judicial.


Também Taiwan, a Coreia do Sul, Singapura, o Irão, a Rússia e a Polónia, entre muitos outros Estados, têm acesso a dados individuais dos doentes e do povo em geral, sendo estes, principalmente, dados digitais. Na Polónia, por exemplo, o governo pede, aleatoriamente, aos habitantes que enviem uma selfie sua em casa, como prova de que estão a cumprir a quarentena obrigatória. O Facebook, conhecida rede social e célebre por alguns escândalos de partilha ilegal de dados, elabora diariamente centenas de mapas nos quais se incluem os movimentos e conexões dos utilizadores, baseando-se para a elaboração desse algoritmo nas redes de amizade dos mesmos.


No entanto, se os países anteriormente referidos disponibilizam aos governos dados pessoais de cada cidadão, desengane-se quem pensa que, perante a actual conjuntura, todas as soluções são iguais e que não há uma alternativa que conjugue o respeito pelos direitos e liberdades de cada um e a prevenção e protecção sanitária. A opção pelos dados anonimizados ou a possibilidade de permitir que cada um disponibilize ou não as suas informações digitais são duas possíveis respostas mais equilibradas e ponderadas ao problema e têm sido cada vez mais tidas em consideração na elaboração dos planos de contingência nacionais.


A OCDE, por sua vez, recomendou vivamente o respeito pela privacidade de cada um, dando assim prioridade a opções como o “uso de dados anonimizados ou sob pseudónimo (…) ou a eliminação dos dados quando deixarem de ser necessários”. Neste sentido, a Noruega garantiu que todos os dados de que passou a dispor serão eliminados ao fim de 30 dias; a Apple e a Google preferem o Bluetooth ao GPS, na medida em que não permite guardar a informação para o futuro; a Áustria e o Reino Unido escolheram centrar-se no fluxo de pessoas e no que este nos pode fazer notar em vez de se focarem na movimentação de cada indivíduo; e a União Europeia tem como objectivo (embora já vá tarde) criar uma app única para os 27 Estados-Membros, responsável pela prevenção e informação acerca da pandemia. Esta aplicação deve estar autorizada a fazer uso apenas de dados anónimos.


Assim, depois de analisadas algumas das estratégias adoptadas pelos governos mundiais, resta perceber os perigos do uso de dados e os limites morais que se impõem a essa mesma acção, pois, se é verdade que este tipo de aplicações tem ajudado a combater de um modo incomparavelmente mais eficaz a pandemia que se abateu, não é menos verdade que caminhamos por águas desconhecidas e cada vez mais profundas.


Apesar de todos os evidentes benefícios da digitalização, esta abre caminho para algo sem precedentes: os governos nacionais, tal como hackers e empresas, terão à sua disposição toda a informação digital de cada cidadão, a tempo real. Assustador, é certo, mas reflecte grande parte da realidade dos dias de hoje. No entanto, e voltando à Covid, é verdade (e considero mesmo desumano negá-lo) que é obrigação de uma sociedade cada vez mais tecnológica tirar partido deste progresso para a cura e salvação de vidas humanas, mas será que vale tudo? Será que não há limites para o controlo que os governos podem ter sobre os nossos dados pessoais? Só há uma resposta aceitável: sim, há limites.


Medidas apertadas de controlo digital podem parecer, à primeira vista, boas e dignas, todavia, podem ser, na verdade, apenas um pretexto para aumentar a vigilância e o controlo dos Estados sobre os seus cidadãos, para, através desse maior conhecimento, exercerem o seu poder, cada vez mais absoluto. Por isso, as democracias não podem nunca permitir que os seus governos toquem naquilo que diz apenas respeito aos cidadãos e à sua privacidade. Saber o que é que pesquisamos na internet, o que “postamos” nas redes sociais ou com quem e do que falamos não é uma forma de combater um vírus, mas um abuso de poder. É uma guerra, mas contra a liberdade. De facto, nunca na História Orwell esteve tão perto de ser a realidade e exemplos como alguns que referi anteriormente não nos podem deixar indiferentes.


O Papa, numa audiência geral com a IBM e a Microsoft sobre a ética no mundo digital, realizada em Fevereiro último, expressou a sua preocupação com os possíveis abusos de autoridade e violações de direitos e liberdades individuais, alertando que “da nossa contribuição digital na internet, os algoritmos extraem dados que permitem controlar hábitos mentais e relacionais, para fins comerciais ou políticos, geralmente sem o nosso conhecimento. Essa assimetria, na qual poucos sabem tudo sobre nós, enquanto nós nada sabemos sobre eles, entorpece o pensamento crítico e o exercício consciente da liberdade”.


Em suma, percebemos que há e tem de haver uma clara distinção entre aquilo que é conjuntural (ou seja, dependente de uma determinada conjuntura política, social, económica, pandémica) e o que, pelo contrário, é estrutural (perene e permanente, independente das conjunturas). Ora, se a pandemia de Covid-19 é conjuntural no tempo e no espaço, os direitos humanos e as liberdades individuais, pelo contrário, devem ser entendidos como fundamentais e, por isso, intemporais. A conjuntura não pode nunca fazer abalar a estrutura, o que significa que um surto epidémico não pode representar o fim de um modelo de sociedade que garante relativamente bem o respeito pela dignidade da pessoa humana. Um regime que controle até o pensamento dos seus cidadãos jamais pode ser considerado uma democracia e esta, ou pelo menos a defesa da dignidade da pessoa humana, nunca pode ser posta em causa, não estando assim dependente de nenhuma conjuntura. Privar um povo dos seus direitos e liberdades não significa uma cura ou medida de prevenção, mas antes um coma induzido por tempo indeterminado.



O autor não escreve em conformidade com as regras do novo Acordo Ortográfico.

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