Dignidade da pessoa humana no século XXI
- Mar Machado da Graça
- 28 de abr. de 2020
- 3 min de leitura

“Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular”. Este é o início do art.1º da Constituição da República portuguesa, mas será que a política das últimas décadas tem refletido a primazia da dignidade da pessoa humana?
A Constituição portuguesa remete-nos para a consagração de um Estado de direitos humanos, tendo de respeitar a dignidade da pessoa humana e defender a vida (“inviolável” à luz do art.26º CRP). Parece, no entanto, difícil enquadrar estes preceitos em algumas das “novidades” políticas e jurídicas das últimas décadas, começando pela liberalização do aborto e, mais recentemente, a discussão no Parlamento da liberalização da eutanásia.
Como é que chegámos a esta situação? Responder a esta pergunta não é fácil, uns dirão que foi um reflexo da liberalização dos costumes, outros dirão que a culpa é da superficialidade das relações humanas dos nossos dias, outros na perspetiva inversa, dirão que é a concretização da liberdade individual. Estas políticas, a meu ver, dão prioridade à vontade popular, em vez de consagrarem a dignidade humana. Considerando a matriz judaico-cristã que está na base da nossa cultura e, ainda, os progressos do passado século em matéria de direitos humanos, é-me difícil compreender que se tenham trilhado estes caminhos. Concordo com o Papa Francisco quando se refere que a mentalidade de hoje faz com que, muitas vezes, cada pessoa seja considerada não pela sua dignidade, mas sim pela sua produtividade e eficiência (Kant ficaria chocado). O Papa afirma, ainda, que é este pensamento que abre portas a desrespeitos muito gravosos. A despenalização do aborto é, na verdade, o culminar de desrespeitos constantes à dignidade humana, acabando por permitir matar quem é inocente.
O século passado ficou marcado pelas maiores atrocidades contra a dignidade da pessoa humana, mas, também, pelos maiores avanços na sua consagração e respeito. O século XXI deveria pretender continuar esse bom caminho. Deveria continuar o legado criado e proteger os entes mais queridos no fim da vida e aqueles que ainda estão por nascer. Porém, hoje, há quem louve um direito a morrer. Mas como é que se pode ter um direito sobre uma coisa ilícita? Relembro, “a vida humana é inviolável” de acordo com o art.26º da CRP. Matar é crime, direito a morrer diz-se legítimo.
Será que, com tudo isto, Portugal ainda é um verdadeiro Estado de direitos humanos? Hoje admite-se que se atente contra a vida mais frágil e, por isso, mais dependente no caso do aborto e abre-se o mesmo caminho na eutanásia. Resta perguntar se a vontade popular pode, como tem acontecido, passar por cima da consagração da dignidade de cada vida. Será que a vontade da maioria pode atropelar a dignidade humana? Em relação a isto, é claro que a Constituição faz prevalecer (referindo-a primeiro) a dignidade humana à vontade popular. A dignidade humana é fundamento e limite do poder político (é, ainda, para Pico della Mirandola, inalienável e incondicional), o que faz com que a maioria não a possa atropelar. Como dizia Benjamin Constant: “a soberania do povo não é ilimitada, nem a sua vontade é suficiente para legitimar tudo aquilo que queira”, o poder político e a democracia têm, por isso, como limite, a pessoa humana.
Este desenvolvimento negativo a que temos assistido pode ser colmatado. Parece-me que o trabalho dos governantes do país deve respeitar o limite que a dignidade humana impõe, preservando a vida de todos. Deve-se, por isso, dar uma nova força ao tão louvável estatuto de Estado de direitos humanos, respeitando os direitos fundamentais, sem nunca esquecer o artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (“Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”). O nosso país foi o primeiro no mundo a abolir a escravatura, que volte a esse caminho e seja exemplo do respeito pela dignidade humana.
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