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´Dois Papas´, quando a forma supera o conteúdo

  • Foto do escritor: Francisco Lopes Matias
    Francisco Lopes Matias
  • 5 de abr. de 2020
  • 7 min de leitura

Atualizado: 17 de jan. de 2023


Sei que já passou muito tempo desde o seu lançamento e que foi muita (e boa) a tinta gasta com este filme, mas queria falar, e sobretudo, pensar um pouco naquilo que é o filme Dois Papas e, essencialmente, no que simboliza.


Em primeiro lugar, embora haja neste nosso blog autores muito mais informados e decerto mais habituados à crítica cinematográfica pura, cabe-me fazer uma pequena e introdutória referência, se o estimado leitor me permitir, à notável qualidade estética da longa-metragem de Meirelles. O filme é prazeroso e não houve, na minha já longa relação com Dois Papas (vi o filme por três vezes), nenhuma ocasião em que a vontade de interromper a visualização fosse sequer comparável ao deleite de passar duas horas e cinco minutos tão bem acompanhado, no que à qualidade técnica respeita. O filme é belíssimo, a fotografia esplêndida e os cenários dão vontade de fazer as malas e ir viver para o Vaticano. Os dois Papas, então, estabelecem entre si uma relação deliciosa, acompanhada de diálogos brilhantes e pormenores demonstrativos de uma astúcia notável por parte do realizador. Mesmo a narrativa, bem construída e surpreendentemente fidedigna, prende o espectador, sendo sempre acompanhada de dois protagonistas que passam de antagónicos a complementares, de inimigos a companheiros. De facto, este é, na minha humilde opinião de aspirante a possível futuro cinéfilo, um dos melhores filmes do ano. Só apresenta um pequeno problema, uma ligeiríssima imperfeição que, confesso, me causou alguma urticária: é quase tudo mentira. O filme seria magnífico como argumento original, mas para “Inspirado em acontecimentos reais” (a citação que inicia a película) é um autêntico desastre!


Na verdade, o filme peca essencialmente por se introduzir deveras na actual tendência de politizar toda a realidade. Tudo é hoje uma questão de esquerda e de direita, até o que não o é realmente. Como tal, o enredo de Fernando Meirelles não é imune a este tipo de visão do mundo. Em tempos tão polarizados como os de hoje, e num contexto eclesial muito próprio, este filme tem um forte objectivo retórico e político, numa tentativa clara de reforçar uma narrativa divisiva, que leva esta “Guerra Fria” dos nossos tempos (em que os direitos humanos, a sexualidade, a cultura ou até o clima são assuntos divididos em direita e esquerda) à realidade da Igreja Católica e, mais concretamente, ao Vaticano.


Neste contexto, a personagem de Bento XVI, conservador, representa uma Igreja completamente paralisada no tempo, enraizada em tradições imutáveis e que parece fazer da regra e do dogma o seu “bezerro de ouro”, que diviniza, esquecendo o “mundo real” que já nada tem em comum com a doutrina tradicional. Por outro lado, o Papa Francisco, progressista e simples, apresenta-se como uma “lufada de ar fresco” para a Igreja, pretendendo uma abertura do Vaticano ao mundo e uma relativização do dogma face à pessoa. Percebemos, desde logo, que estamos perante um vilão e um herói, mas desengane-se quem considera que Bento XVI foi mais denegrido ou afectado pela crítica do filme.


De facto, arrisco-me mesmo a dizer que Francisco sofre mais com o filme do que o Papa Emérito, na medida em que é retratado, não como um católico mais progressista, mas como um revolucionário que vira as costas à Tradição, representando quase uma nova Igreja, não católica mas mundana. Esta é, na verdade, a narrativa que a comunicação social tem construído sobre o actual Sumo Pontífice, mas não corresponde de todo à verdade do seu pontificado. Mas voltando ao filme, este começa com uma imprecisão histórica grave para quem diz ter estudado durante anos o Vaticano e os últimos papados: o Cardeal Ratzinger era o Decano do Colégio dos Cardeais, presidindo assim ao Conclave que o viria a eleger, em 2005. No filme, todavia, o braço-direito de São João Paulo II é apenas mais um dos cardeais, embora profundamente obstinado e focado no poder e no papado. Distante, arrogante e ambicioso (chega mesmo a fazer “campanha”), que despreza o cardeal Bergoglio (futuro Papa Francisco) por saber que será um rival na corrida ao cargo deixado vago pela morte de São João Paulo II. Assim é retratado Bento XVI nas primeiras cenas do filme, o que contrasta em absoluto com a verdade histórica. A certa altura do Conclave fictício, aliás, um cardeal incógnito dirige-se ao actual Papa argentino, afirmando que “a qualificação mais importante para qualquer líder é não querer ser um”, citando Platão, completando com “e por isso é que Ratzinger não pode ser eleito”. Nada mais errado, tendo em conta que o cardeal Joseph Ratzinger, enquanto Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (e um dos mais importantes e íntimos colaboradores do Papa), pediu por duas vezes ao Santo Padre, o agora São João Paulo II, a reforma, pedido que nunca foi atendido, por considerar o agora santo polaco que este era de vital importância para o futuro da Igreja, o que, de facto, se veio a confirmar. Ora, se o alemão sonhava com o papado, porquê renunciar ao cardinalato, que impediria perpetuamente uma eventual eleição?


Meirelles é, na verdade, um realizador hábil e tecnicamente muito interessante, mas muito pouco conhecedor da vida da Igreja, o que o leva a encarar os cardeais como um simples conjunto de purpurados que decidem o conclave como uma manobra de um jogo de xadrez e a realidade eclesial como apenas mais uma questão política ou mesmo de popularidade. A impressão que é passada do pontificado de Bento XVI (e, diga-se a verdade, do próprio Papa alemão) é a prova mais evidente do enorme fracasso do realizador brasileiro neste sentido. Vemos que o Papa Emérito é frequentemente retratado pelos fiéis e habitantes de Roma como extremamente fechado, conservador ou mesmo (parece absurdo, mas não é!) “nazi”. A Igreja Católica parece caminhar exponencialmente para a sua extinção e os escândalos, financeiros e sexuais, multiplicam-se.


Para Meirelles, os quase oito anos de Bento XVI à frente da Barca de Pedro merecem apenas cerca de três minutos de filme e esta imagem altamente tendenciosa. Mas era o Santo Padre Emérito realmente impopular? Claro que não. E basta ver imagens das viagens apostólicas do Papa ou das Jornadas Mundiais da Juventude (nomeadamente das de Madrid, em que milhões de jovens de todo o mundo entoavam a uma só voz “Esta es la juventud del Papa”). Mas mais grave ainda é a falsa acusação que é feita ao Papa alemão acerca do conhecido caso de pedofilia do Pe. Marcial Maciel, que supostamente ocultara durante anos. Na verdade, enquanto Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Ratzinger abriu um processo canónico contra o fundador dos Legionários de Cristo e, como Papa, Bento XVI, no seu primeiro ano, afastou imediatamente Maciel das suas funções clericais. Como se não bastasse, foi sem sombra de dúvida um dos Papas que mais fez para eliminar este flagelo, tornando possível a remoção de padres que abusassem de crianças e seminaristas e recomendando vivamente a colaboração com as autoridades. Ou seja, mais do que mentira, isto é pura ignorância.


O que o filme dá a entender é que o Pontificado de Bento XVI (e nele erradamente representada toda a carga dogmática, moral e tradicional da Igreja, tal como o seu apego às Escrituras e ao divino) foi um autêntico fracasso, o que, conjugado com uma suposta crise de fé do Sumo Pontífice, a qual é muito explorada num dos diálogos entre os dois Papas mas não passa de mais uma maliciosa suposição do realizador brasileiro, levou Bento XVI a ver como única opção a renúncia que, segundo o filme, é confirmada depois do encontro com o então Arcebispo de Buenos Aires (“Agora vejo que a Igreja precisa de um Bergoglio”). O que é curioso nesta cena é que, embora saibamos que nenhum membro da Cúria Vaticana tenha sido informado da decisão da renúncia (nem mesmo o Director Espiritual do Papa!), o cardeal Bergoglio, que nem era particularmente próximo do Santo Padre, é o primeiro a ser informado. Infelizmente, estes encontros no Vaticano e em Castel Gandolfo não são, à semelhança de quase tudo o resto, verídicos.


Por último, se o Papa Bento é completamente difamado, o actual Sumo Pontífice, Francisco, também é representado de uma forma totalmente injusta e inverídica, sendo mais caracterizado como um revolucionário do que propriamente como um cardeal católico. A ideia que Dois Papas transmite – a de uma divisão e conflito entre os dois protagonistas, embora Bento XVI se vá “humanizando” à medida que vai conhecendo e dialogando com Bergoglio (nada mais falso) – é, na verdade, a de uma revolução no seio da própria Igreja, o que está patente no suposto desejo de reforma que levou Bergoglio ao Vaticano, no filme de Meirelles. Esta viagem é apresentada como uma manifestação de uma discordância em relação ao Papa, o que é mentira. Acontece que aos 75 anos os cardeais e bispos são aconselhados a reformarem-se, sem para isso precisarem da autorização do Papa (e muito menos de se encontrar com o Sumo Pontífice). Ora, Bergoglio tinha já completado 75 anos quando o filme se desenrola, o que o obrigava a pronunciar-se sobre a matéria. Não houve aqui qualquer tipo de oposição interna a Bento XVI e ao seu magistério.

Assim, há no filme uma completa deturpação das intenções do cardeal Bergoglio, como se em vez de adaptação e actualização, o Papa Francisco representasse uma ruptura total em relação a 2000 anos de Igreja, o que é, obviamente, falso e desmentido pelo pontificado irrepreensível e consistente do actual Vigário de Cristo. Alguma vez um Papa se referiria ao Sacramento da Confissão como “palavras mágicas que não resolvem nada”, citando a própria fala do cardeal Bergoglio no “diálogo” de Castel Gandolfo? Alguma vez vimos o Papa Francisco dizer isto? O Papa Francisco é integralmente católico, e não um herege. Não criou nem pretende criar uma religião nova, na qual “Deus está em constante movimento” (outra das polémicas expressões do filme de Meirelles). Pretende sim, e está a consegui-lo, procurar novas formas de apostolado e uma evangelização que tenha mais em conta as diferenças culturais e geográficas. O que muda não é nem pode ser a Doutrina ou a Fé, mas a forma de transmiti-la. De época em época e de continente para continente. E isso este Papa percebe muito bem.


Em suma, o filme é tecnicamente brilhante, mas o argumento não é nada positivo, preocupando-se mais em vender e agradar ao público do que em corresponder a uma história verídica. Era indubitavelmente um filme com muito potencial; pena que os protagonistas de Dois Papas apenas partilhem com os verdadeiros Pontífices o nome.



O autor não escreve em conformidade com as regras do novo Acordo Ortográfico.

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