EUA e Irão: breve história de um passado conturbado e de um futuro incerto
- Francisco Lopes Matias
- 18 de abr. de 2020
- 5 min de leitura

Estamos em tempo de pandemia (o que significa, portanto, que me interessa falar e escrever sobre tudo menos a pandemia) e por isso vou roubar-vos o tempo com algo que foi um tema muito abordado há uns meses, mas que infelizmente perdeu protagonismo nos últimos tempos. Todavia, para quem segue política internacional, há poucos assuntos mais importantes do que a difícil relação entre os EUA e o Irão e por isso, gostava de resumir e expor um pouco daquilo que tem sido ultimamente esta tumultuosa relação. Comecemos.
Em 1979, o Irão iniciou um novo e marcante momento político, desencadeado pela Revolução Islâmica do mesmo ano, que transformou este país - até então uma monarquia autocrática pró-Ocidente (e, em especial, pró-Estados Unidos), moderna e altamente progressista para a realidade do Médio Oriente, com uma elite intelectual (incluindo muitas mulheres) que se destacava largamente dos países vizinhos e que era comandada pelo Xá Mohammad Reza Pahlevi - numa República Islâmica teocrática e altamente conservadora, sob o comando do religioso Aiatolá Ruhollah Khomeini, um líder islâmico xiita e, simultaneamente, Líder Supremo do país, que confundiu a Sharia (lei islâmica) com a lei civil iraniana, o que se verifica ainda hoje.
Desde então, a República Islâmica do Irão tem desenvolvido um esforço constante com o propósito de criar e alargar um já extenso e imponente programa nuclear, não escondendo o objectivo de passar mesmo para o armamento, tornando-se assim o décimo país mundial a possuir armas nucleares, o que pode ser considerado extremamente perigoso, visto que o governo iraniano, inimigo primeiro e principal de Israel, tem como declarada intenção destruir a única democracia do Médio Oriente (“É a missão da República Islâmica do Irão apagar Israel do mapa”, nas palavras do próprio Khamenei, o actual Líder Supremo iraniano). Ora, Israel é, simultaneamente, a única democracia da região e o grande aliado dos EUA no Médio Oriente, mas inimigo principal tanto do Irão como de tantas outras nações em seu redor.
Assim, desde 1979, os EUA têm aplicado duras sanções económicas ao Irão, como forma de impedir que estes acumulem dinheiro suficiente para desenvolver um programa nuclear em condições, que garanta a tão temida bomba atómica. Todavia, em 2015, o Presidente Obama quis pacificar esta “panela de pressão”, assinando, depois de intensas e numerosas negociações multilaterais, um acordo nuclear com o Irão (Joint Comprehensive Plan of Action), juntamente com França, Reino Unido, Alemanha, Rússia e China (P5+1), que, muito resumidamente, limitou a produção nuclear do Irão para apenas um terço dos valores de então, garantindo que o total era usado para a produção de energia e nunca de armamento. Do mesmo modo, comprometeu-se a eliminar 98% das suas reservas de urânio enriquecido. Em troca, os restantes signatários prometiam uma colossal suavização (quase eliminação) das sanções aplicadas ao Irão. Parece, até, bastante razoável. O único problema é que a grande maioria destas cláusulas só era válida até 2035, não havendo nada que proibisse verdadeiramente o Irão de vir a ter armas nucleares a médio-longo prazo. O JCPOA tinha ainda mais uma cláusula que dava ao Irão milhares de milhões de dólares, como compensação pelas sanções anteriormente aplicadas.
Neste contexto, quando Trump chegou à presidência, alertou imediatamente para os perigos deste tratado, por este não garantir a total impossibilidade do Irão vir a ter armas nucleares (porque, apesar de muitos alegarem que se trata de uma mera questão política com Obama, parece-me que as preocupações de Trump são sinceras). Como tal, em 2018, os EUA saíram do JCPOA, voltando a aplicar duríssimas sanções ao Irão. Trump, à época, justificou a saída dos Estados Unidos com dois fortes motivos: se, por um lado, o acordo não impedia que os iranianos viessem a ter, um dia mais tarde, armas nucleares; por outro, o Presidente americano alegava ter informações de que o Irão, para além de descumprir clandestinamente o acordo, utilizava os milhões de dólares dados de boa vontade pelo Ocidente para financiar grupos terroristas.
No seguimento desta ruptura, nos últimos dois anos, os EUA têm vindo a apertar significativamente as sanções ao Irão, o que não impediu, no entanto, os outros signatários de permanecer no acordo, tal como a República Islâmica. O Irão passou a declarar os EUA como seu principal inimigo, até chegar ao extremo de, através do general Qassem Soleimani e de muitas operações militares preliminares, cercar a embaixada dos EUA em Bagdad, capital de um Iraque completamente polarizado, em que a influência do Irão só é posta em causa pela presença militar norte-americana. Como resposta, os EUA enviaram tropas e, a 3 de Janeiro deste ano, assassinaram o general Soleimani. Mataram-no, mais uma vez, por dois motivos devidamente apresentados por Trump: por um lado, ele era um terrorista directamente responsável pela morte de milhares de pessoas, quer através das missões que executava e comandava, quer através do apoio dado a grupos como o Hezzbolah libanês, o Hamas palestiniano ou mesmo a Al-Qaeda; por outro, para acelerar o descontentamento e revolta do Irão. A operação, brilhantemente executada e utilizando tecnologia militar de ponta, resultou na morte solitária de Soleimani através do ataque de um drone. Como resposta, supostamente “terrível”, o Irão limitou-se a atacar bases militares americanas no Iraque (sem qualquer vítima mortal, o que Trump esperava, visto que o Irão tem perfeita noção da sua inferioridade militar face aos EUA, não querendo por isso começar uma guerra). Simultaneamente, o Irão anunciou também a sua saída do Acordo Nuclear de 2015.
Se alguns consideram isto uma derrota para os EUA, parece-me, pelo contrário, que Trump consegue exactamente o que pretendia: evitar a todo o custo que o Irão tenha armas nucleares. Este é o ponto inegociável para a actual Administração americana, estando a mesma disposta a assumir elevados riscos (como estas operações militares) para a concretização desse mesmo objectivo. E há a possibilidade cada vez mais real disto poder vir a acontecer. Pode mesmo estar para um futuro próximo. Porque tendo saído o Irão do acordo, os parceiros ocidentais fizeram, naturalmente, o mesmo, não tendo, no entanto, acordado com os EUA as sanções. Mesmo assim, com o brutal aumento de sanções por parte dos Estados Unidos, a economia iraniana corre o sério risco de ser aniquilada, o que obrigará necessariamente o governo de Khamenei e Rouhani a voltar à mesa das negociações, o que Trump, aliás, disse, no seu memorável discurso de 8 de Janeiro, ser o seu maior desejo. De facto, se Trump conseguir sentar de novo todos à mesa, vai tentar impor as suas condições ao Irão, o que implicará, certamente, a proibição total e absoluta deste vir algum dia a ter armas nucleares. Este é o ponto crucial, o horizonte negocial de Trump, o seu grande trunfo. E se isto for, porventura, alcançado, Trump conseguirá provavelmente o maior feito ao nível da política externa do século, aquilo que os seus antecessores na Casa Branca (incluindo Obama) tentaram continuamente, sem sucesso, desde 1979. E sem qualquer morte do seu lado. Notável!
Não há dúvida de que parece estrategicamente brilhante, mas a reflexão que deixo é: até quando e até que nível chegarão as sanções americanas? E quanta gente não terá comida na mesa devido a esta disputa? E quais são as prioridades do governo iraniano: ostentar poder nuclear e deixar os seus cidadãos morrer à fome ou abdicar desta perigosíssima ambição em nome da protecção do seu povo? No entanto, uma coisa é garantida, e nesse aspecto tiro o chapéu a Trump: se o Irão não vier a ter acesso a armamento nuclear, milhões de pessoas no mundo e no Médio Oriente poderão finalmente respirar de alívio.
O autor não escreve em conformidade com as regras do novo Acordo Ortográfico.
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