George Floyd, o racismo e um mundo de pernas para o ar
- Francisco Lopes Matias
- 1 de jun. de 2020
- 7 min de leitura

Na passada segunda-feira, 25 de Maio, o mundo assistiu perplexo ao bárbaro homicídio de George Floyd, um homem de meia-idade (46 anos), assassinado friamente pelo agente Derek Chauvin, um elemento do Departamento da Polícia de Minneapolis, maior cidade do estado norte-americano do Minnesota. O momento é absolutamente arrepiante e, devo confessar, causou em mim um profundo mal-estar e comoção inicial, que se manteve na mais de uma dezena de vezes que vi o vídeo.
E porque é que isto provoca em nós uma reacção tão intensa? Porque encarna justamente o pior que o ser humano pode ser e fazer. Um agente da polícia e parte integrante de um vital órgão de segurança pública (sim, leu bem, órgão de segurança pública) matou de uma forma vil e covarde – pressionando com o joelho esquerdo o pescoço de Floyd durante 8 minutos e até à inconsciência por asfixia do detido – um ser humano algemado e completamente desarmado. Tudo isto à frente de dezenas de câmaras e telemóveis que gravavam o sucedido em directo e perante a postura apática (e por isso cúmplice) de um outro agente, Thu Thao.
Foi ali, na berma de uma estrada da baixa de Minneapolis, que George Floyd, um ex-segurança e condutor de camiões e pai de uma filha de seis anos, morreu. Sozinho e impotente, enquanto suplicava desesperadamente ao seu carrasco “Officer, I can´t breathe”, sussurrando também “Momma, momma”, como quem recorre, à hora da morte, à protecção maternal, que, infelizmente, lhe veio a faltar nesta hora derradeira. Mas qual foi, então, o crime que George Floyd cometeu, poder-se-ia perguntar? O que pode servir de justificação ou motivo para este comportamento por parte de quem devia garantir a paz social e inexistência de crimes? Imagine-se, era suspeito, não de um atentado bombista, de um homicídio premeditado ou de um horrendo acto pedófilo, mas de usar uma nota de $20 falsificada numa mercearia. Repito, o homem que foi assassinado desta forma atroz por um polícia era suspeito apenas de usar uma nota falsificada.
O que vemos neste episódio não é (ou melhor, não é só) um branco a matar um negro ou um polícia a matar um civil, é sim um ser humano a tirar a vida a outro seu par, ainda para mais sendo uma pessoa que tem como função proteger e defender a vida de civis como Floyd.
O que aconteceu foi, portanto, horrível. Todavia, arrisco-me a dizer que o aproveitamento político e a onda de protestos não pacíficos que se têm sucedido não só atingem níveis de maldade e violência que, embora não com a malícia premeditada do inicial, são quase comparáveis ao acontecimento de Minneapolis como envergonham decerto a memória de George Floyd, mesmo sendo, supostamente, uma forma de homenageá-lo. Aqueles que, ao que parece com verdade, apregoam o crónico bom comportamento de Floyd em vida, denunciando a violência desproporcional da polícia, são hoje os primeiros a queimar carros, agredir os agentes da autoridade e destruir as esquadras policiais ou a matar jovens de 19 anos completamente alheios ao caso, como sucedeu em Indianápolis este fim-de-semana. Estaria George Floyd contente por ver que, à custa da sua morte, mais cinco pessoas (até à manhã de segunda-feira dia 1 de Junho) perderam a vida, estando mais umas dezenas em estado crítico e mais de 1.700 presas? Eu tenho a certeza de que não.
Em Minneapolis, Detroit, Oakland, Nova Iorque, Lincoln, Portland, Los Angeles, Phoenix, Houston, Dallas e em mais umas dezenas de cidades americanas (no total já são 75 cidades com protestos) multiplicaram-se os protestos violentos, já não contra a morte bárbara de George Floyd, mas usando-a como pretexto para vandalizar cidades, carros, lojas e estabelecimentos comerciais (muitas vezes de negros) ou mesmo investir contra a polícia, atitude que já matou a tiro um agente e feriu com gravidade muitos mais.
Não conheço ninguém que não tenha ficado indignado com o episódio de Minneapolis, mas este tipo de violência (que não é de negros contra brancos e por questões meramente raciais, mas de organizações que incitam muitas vezes à violência como o movimento Black Lives Matter ou o proto-terrorista ANTIFA, que tem objectivos ideológicos profundos e uma vontade de provocar o terror e a anarquia) não pode deixar ninguém indiferente. Que fique bem claro: o agente federal que morreu em Oakland a tentar manter a ordem, o jovem de 19 anos cuja vida foi ceifada em Detroit ou as restantes três vítimas mortais têm tanto valor como George Floyd, porque um ser humano não vale mais do que nenhum outro pela cor da sua pele ou pela quantidade de vezes que é referido pela imprensa. É preciso ser coerente. Se todos estamos de acordo acerca da brutalidade da morte de Floyd, então não podemos defender acções semelhantes como resposta, nem muito menos a sua legitimidade. Martin Luther King, mártir dos direitos humanos e da resistência pacífica contra o racismo institucional que afectava os EUA na sua época, lembra-nos que “a violência como forma de alcançar a justiça racial é impraticável e imoral (...) e, apesar das vitórias temporárias, a violência nunca traz paz permanente”.
Parece que, na maior potência a nível mundial, o ser humano ainda é julgado (para o bem e para o mal) mais pela cor da sua pele do que pelo seu carácter. Devido a heróis como Martin Luther King ou Rosa Parks, o racismo já não é defendido por lei nos Estados Unidos da América, mas ainda se reflete, infelizmente e sem qualquer dúvida, no comportamento de algumas pessoas. Isso é, indubitavelmente, verdade. Todavia, não é fomentando o ódio racial e a violência contra inocentes que chegaremos a um mundo mais igual e pacífico, ou, como dizia Mandela, a uma “sociedade democrática e livre, na qual todas as pessoas vivem juntas em harmonia e com oportunidades iguais”.
Culpar “os brancos” pela morte de Floyd (ou de Eric Garner, Fred Gray, Botham Jean ou Atatiana Jefferson, tal como de todos os outros “negros” mortos injusta e inocentemente pela polícia norte-americana) é profundamente errado e, se quisermos ser factual e intelectualmente honestos, racista. Culpar a polícia (como instituição) por actos como estes é também deveras injusto. Numa instituição que conta com mais de 800.000 agentes, a probabilidade de haver indivíduos racistas no seu seio é enorme (e, efectivamente, confirma-se), mas a excepção (ou as excepções) não faz a regra e generalizar, acusando desta forma gratuita aqueles que, independentemente das falhas gravíssimas de uns quantos, garantem, na sua maioria e salvo algumas “maçãs podres”, a lei, a ordem e a paz social em território norte-americano é, para além de enormemente desonesto, barbaramente injusto.
Está assim na altura de reformar o olhar e deixar de ver tudo como, literalmente, “preto ou branco”, bom ou mau, justo ou injusto. Ninguém nasce bondoso ou malvado pela cor da sua pele e também não há ninguém que nasça racista ou com o culpa pelo que os seus pais, avós ou compatriotas fizeram em tempos. O punho cerrado como símbolo de resistência de uma comunidade contra outra e as irmandades raciais como o Black Lives Matter ou os extintos Black Panthers são, de facto, das realidades mais racistas a que se assistem nos dias de hoje, porque baseiam os seus laços e a sua pretensa irmandade não na humanidade que partilham com todos e cada um de nós, mas na especificidade da sua cor de pele. Não temos de trabalhar uns contra os outros nem uma raça contra outra. A maioria dos negros (como a maioria dos brancos) não quer isto, não pensa assim, deste modo que tem mais interesse em construir muros e barreiras do que pontes. A maioria das pessoas, independentemente da sua cor, raça ou etnia, querem paz e não violência; amor e não ódio; igualdade e não mais diferenças; o desaparecimento de Derek Chauvins e Ku Klux Klans e não o surgimento de instituições iguais “do outro lado”; um Estado que os proteja e defenda como iguais e não um que mate em nome deles.
Aquilo a que assistimos desde 25 de Maio é a prova mais de que inequívoca de que o racismo não é solução e tem de ser combatido com mãos humanas e conciliadoras, porque, parafraseando uma vez mais o Nobel da Paz Martin Luther King, “a escuridão não pode expulsar a escuridão, apenas a luz pode fazer isso. O ódio não pode expulsar o ódio, só o amor pode fazer isso”. É para isto que temos de trabalhar, para um mundo de amor e de verdadeira cooperação entre todos. E enquanto todos, seja de que cor, raça ou credo forem, não entenderem no seu mais profundo sentido a mensagem de Martin Luther King (que espelha, de certa forma e em alguns aspectos, a mensagem de Jesus Cristo), o flagelo do racismo vai continuar, cada vez mais fomentado e fortificado por mensagens parciais e uso desmedido da força contra uns e em nome dos outros.
Quem é racista não tem só um défice de humanidade, mas também um défice de inteligência e raciocínio lógico, porque não conseguiu perceber que não há nada que diferencie um branco e um negro, para além da cor da sua pele. O sangue de um branco é da mesma cor do que o sangue de um negro. A alegria e a tristeza que um branco sente são as mesmas que um negro em iguais circunstâncias sente. Um negro sabe amar, como um branco sabe amar. Ou melhor, o negro, tal como o branco, o indiano, o asiático e o latino-americano foram feitos para amar. Para se amarem mutuamente. O negro é um ser com alma, como um branco é um ser com alma. Mais do que cidadãos de iguais direitos, são seres humanos de igual dignidade. Está na hora de perceber que querer separar ou discriminar as pessoas por raças ou cores é tão redutor e ilógico como deixar apenas uma cor numa paleta e pintar uma tela inteira com ela. Privamos assim a pintura da diversidade que poderia ter e das riquezas que isso mesmo pode gerar. Uma tela multicolor é muito mais rica e decerto mais bonita do que uma tela que só contemple uma cor. Não há brancos, negros, árabes, eslavos, ciganos, latino-americanos, arianos ou esquimós. Há seres humanos.
Mas o racismo existe e não podemos nunca fechar os olhos para esta realidade e, se é obrigação de uns não tentar em momento algum justificar ou relativizar barbáries como aquelas a que assistimos regularmente nos EUA e no mundo, é dever dos outros dar o exemplo de que são melhores do que quem os despreza, respondendo com amor e cooperação e não com violência desmedida e um clima de terror, incêndios e morte, porque o que querem é um mundo melhor, mais justo e fraterno e não uma sucessão infindável de guerras e homicídios de inocentes. É preciso perceber de vez que somos bons e dignos porque somos humanos, e não porque temos determinadas características que nos distinguem dos demais. Fomos criados para ser muito melhores do que isto. Podemos então começar a sê-lo?
In memoriam de George Floyd e de todas as vítimas mortais dos protestos violentos nos Estados Unidos da América.
O autor não escreve em conformidade com as regras do novo Acordo Ortográfico.
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