Liberdade no século XXI: o espaço entre a tolerância e o desrespeito
- Rosarinho Moreira Rato
- 23 de abr. de 2020
- 3 min de leitura

Apenas cumpria o meu dever enquanto aluna do 12º ano quando me deparei com a seguinte expressão: “É verdade que o autor é livre de escrever o que quiser [...]. A censura no sentido de repressão não faz muito sentido”. Vinha a propósito do livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo de Saramago, numa entrevista ao padre Jacinto Farias, professor na Universidade Católica Portuguesa. O livro em questão, citando o padre Jacinto, “toca pontos que ferem sensibilidades” e “não é fiel aos textos bíblicos”, para além de ele próprio o considerar excessivo e de o ter magoado bastante.
Será que devia existir um limite? Há assuntos que são intocáveis? Sendo grande defensora da liberdade de expressão e também como católica e algo conservadora, não foi a primeira vez que refleti sobre a necessidade da censura.
Em dezembro de 2019, foi lançado pela Netflix um especial de comédia do grupo humorístico Porta dos Fundos que, aliás, é razão de já não subscrevermos a plataforma cá em casa. Chama-se A Primeira Tentação de Cristo, retrata Jesus como homossexual e insinua um triângulo amoroso entre Deus, Maria e José. Poremos de parte todas as discussões que se podem gerar sobre homofobia e a moralidade (ou não) das relações entre pessoas do mesmo sexo. A verdade é que exercendo a sua liberdade, estes comediantes brasileiros desrespeitaram uma religião inteira e conseguiram passar por heróis quando o especial esteve para ser removido da Netflix no Brasil.
Na altura, perguntei-me se todas as petições que pediam a remoção do especial não seriam exageradas. Afinal, vivemos numa época em que se pode falar e fazer troça de quase tudo, e não saber aceitar uma piada parece sinal de fraqueza e sensibilidade. Há quem defenda que é possível gozar com qualquer situação, e ainda mais com aquelas que à partida não dão motivos para rir. Um grande apologista desta filosofia é o comediante Anthony Jeselnik, conhecido pelo seu humor negro e piadas desconfortáveis. Mas o conteúdo do especial ofendeu-me, assim como ofendeu a minha família e muitos outros cristãos à volta do mundo.
À medida que o mundo evoluía, as pessoas foram perdendo o medo que tinham da Igreja. E por muitos que fossem verdadeiramente devotos, é impossível ignorar os períodos da história em que tantos foram aterrorizados e perseguidos por homens que julgavam agir em nome de Deus. É bom não existir tanta repressão por parte da Igreja, mas numa altura em que tanto se promove a tolerância (que até se toleram coisas indescritíveis) parece lamentável que ainda se permitam e aplaudam ofensas a uma determinada religião.
Não vejo tantas pessoas não religiosas a defender os cristãos como a defender, por exemplo, os judeus ou os muçulmanos. E ao argumento da descriminação que as outras religiões sofrem, respondo que os cristãos são atualmente os mais perseguidos no mundo. Campos de concentração na China, igrejas incendiadas por feministas no México, acontecimentos que passam ao lado de tanta gente. Aparentemente desde que foram descobertos os abusos dentro da Igreja, passou a existir um defeito reconhecido por qualquer pessoa com o mínimo de bom senso, e a partir daí todas as blasfémias são justificadas. Não é por sermos modernos que podemos gozar com o Cristianismo. Não é por deixarmos de ter medo que podemos ridicularizar Jesus Cristo e uma fé que significa tanto para tanta gente.
A liberdade de expressão é das coisas mais preciosas que temos e talvez só nos apercebamos do seu valor quando não é respeitada. Tenho sorte em poder discutir e falar abertamente de tantos assuntos que me interessam, quando ainda em muitas partes do mundo as ideias das pessoas são reprimidas e condenadas. Mas o respeito pelo outro é um dever inerente à liberdade. Para existir uma sociedade têm de existir limites, e nem tudo pode ser transformado em material cómico.
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