O fim da era Trump: balanço e resumo de quatro anos intensos (em 6 temas)
- Francisco Lopes Matias
- 19 de jan. de 2021
- 11 min de leitura
Atualizado: 27 de jun. de 2021

Amanhã, às 12h, Joe Biden tomará posse como Presidente dos EUA, chegando ao fim a presidência de Donald Trump, que, embora só tenha durado quatro anos, parece ter marcado uma era. Chega ao fim o consulado daquele que por muitos é considerado o “rei dos populistas”, que tornou o Twitter na ferramenta de comunicação política que é hoje, que cunhou definitivamente a expressão “fake news” e que começou uma guerra sem igual com os media tradicionais.
Hoje é, portanto, o último dia de Trump enquanto “inquilino” da Casa Banca, marcando o ponto final naquele que se orgulha de ter sido, segundo ele mesmo, “o melhor Presidenta da História dos EUA”, que teve mais polémicas (e pesquisas no Google) que qualquer outro líder político mundial, de uma figura polarizada e polarizante, a quem ninguém é indiferente. Foi, simultaneamente, o primeiro Presidente a abdicar do salário presidencial e a não divulgar as suas declarações de impostos.
Depois da maior expressão de sempre da vontade popular (como Trump entitula a sua vitória em 2016), veio a “eleição mais fraudulenta de sempre” (nas palavras muito discutíveis do ainda Presidente norte-americano), que culminou no triunfo de Joe Biden e no ataque ao Capitólio.
Mas foi realmente Trump um Presidente horrível, a maior ameaça à democracia dos últimos tempos, o Presidente da discórdia e da discriminação? Ou será que foi o melhor líder de sempre, que fez da América “great again” e maior do que nunca? Ora, muito provavelmente, nem um nem outro. Trump foi um Presidente mais normal do que se pensa e teve um mandato interessante, com altos e baixos, e de extrema relevância para o panorama internacional, que talvez tenha alterado para sempre. Vamos lá a uma breve análise dos últimos quatro anos dos Estados Unidos da América!
POLÍTICA EXTERNA
A doutrina America First teve o seu principal campo de acção na política externa, em que Trump adoptou uma postura isolacionista, patente na saída do Acordo do Clima de 2015 (mais conhecido como Acordo de Paris), da UNESCO e da Organização Mundial de Saúde, em plena pandemia.
Contra a China, assumiu sempre uma postura muito forte, apelidando-a de maior inimiga dos Estados Unidos, tanto a nível económico como político. Neste último campo, impôs sanções ao governo de Pequim pela repressão contra os uigures em Xinjiang e pelos ataques à democracia e ao povo de Hong Kong. Foi também o primeiro Presidente dos EUA desde 1979 a comunicar com o Chefe de Estado de Taiwan, Tsai Ing-wen, dando um passo importante nas relações com a ilha cuja independência o governo de Xi Jinping não reconhece. No plano tecnológico, polémicas como a “crise do 5G”, que levou ao banimento da Huawei dos EUA devido à sua proximidade com o governo chinês (que produziu reacções semelhantes na Austrália, Nova Zelândia, Canadá ou Singapura) ou como a mais recente oposição à rede social TikTok, pelas mesmas razões de cibersegurança, mostraram uma Administração americana muito firme no combate à China e à sua vantagem na inteligência artificial e no tratamento da informação.
Donald Trump entra na história como o primeiro Presidente americano a reunir com Kim Jong-un, ditador norte-coreano e foi o primeiro a pisar solo da Coreia do Norte, marcando uma diferenciação clara face aos seus antecessores e tentando iniciar um novo capítulo diplomático com o país mais isolado do mundo. A verdade é que, muito graças a Trump, as relações entre as Coreias são hoje muito melhores do que há quatro anos, tendo sido restabelecido o diálogo entre ambas, que teve o seu ponto alto na ida de uma comitiva norte-coreana aos Jogos Olímpicos de Inverno desse ano, realizados na Coreia do Sul.
O principal aliado dos Estados Unidos de Trump foi o já grande amigo Israel, e, em especial, o Primeiro-Ministro Netanyahu, com quem estabeleceu até uma relação pessoal de amizade. O ponto alto desta boa relação foi o reconhecimento, no fim de 2017, de Jerusalém como capital israelita, pretensão da maior importância para o Estado Judeu. Nos últimos meses, a Administração Trump promoveu diversos acordos de paz entre Israel e países árabes como os Emirados Árabes Unidos, Bahrein ou Sudão, dando largos passos para o reconhecimento de um futuro tratado normalizador das relações entre a nação bíblica e o Catar ou mesmo a Arábia Saudita, que, acontecendo, representariam um importante marco na concórdia entre duas religiões inimigas e rumo à paz mundial. Por tudo isto, foi, segundo anunciou a imprensa, nomeado para o Prémio Nobel da Paz de 2021 (o que já tinha acontecido, ao que tudo indica, em anos anteriores). No início de 2020 e com um grande apoio do genro e conselheiro Jared Kushner, propôs uma “solução realista de dois estados” para resolver o incomparável conflito israelo-palestiniano, mas a Palestina recusou à partida participar nas negociações, faltando à cimeira na Casa Branca, que assim se tornou em mais uma conversa entre Trump e Netanyahu.
Nos últimos quatro anos, o Irão tornou-se no principal inimigo americano no Médio Oriente, retirando-se os Estados Unidos do acordo nuclear assinado pelo Presidente Obama com a antiga Pérsia, por ser um pacto que supostamente não oferecia nenhuma garantia de que o Irão não acederia futuramente a armamento nuclear e por suspeitas de fraude iraniana. Ao fim do acordo seguiram-se inúmeras sanções e um aumento das hostilidades, que culminou na morte do general Qasem Soleimani, que, em Janeiro de 2020, levou a uma tensão que fez muitos pensar ser o início da “Terceira Guerra Mundial”, que nunca veio, como sabemos, a acontecer.
A sua relação com a Rússia de Putin foi sempre ambígua, ora com insultos e acusações, ora com elogios e defesas mútuas. Fez oposição a Maduro na Venezuela e reconheceu Juan Guaidó como Presidente, voltou à linha dura de sanções face a Cuba e estreitou as relações com o Brasil de Bolsonaro.
Retirou tropas do Afeganistão, do Iraque e da Síria e pode orgulhar-se de ter sido o primeiro Presidente desde Kennedy a não começar uma guerra (o que para maior ameaça para a paz mundial - como o descrevem - não está nada mal). Para além disso, mudou o foco da guerra da Síria unicamente para o terrorismo, sendo que praticamente eliminou o Daesh, com operações cirúrgicas e a morte do seu líder, Abu Bakr al-Baghdadi.
O Presidente americano defendeu também uma revisão do funcionamento da NATO, que acusa de ser sustentada quase unicamente pelos Estados Unidos sem uma contrapartida que o justifique, e da ONU, mostrando também uma postura mais hostil com a União Europeia, que perdeu força como um dos principais aliados económicos e políticos da terra do tio Sam, bem patente na ausência de uma estratégia comum contra a Covid-19. No entanto, estabeleceu boas relações com o Reino Unido de Boris Johnson, tendo também apoiado o Brexit.
IMIGRAÇÃO
Sendo que a sua principal bandeira de campanha em 2016 foi a questão do muro, não admira que a primeira ordem executiva que assinou tenha sido o encerramento das fronteiras durante 120 dias para turistas e imigrantes provenientes de sete países (Irão, Líbia, Iraque, Somália, Sudão, Síria e Iémen).
Seguiu-se depois o fortalecimento da polícia de imigração e o cada vez mais difícil acesso a vistos de trabalho nos EUA, com o objectivo de proteger o emprego nacional. A imigração ilegal tornou-se um dos campos de combate do Presidente, que tentou cumprir a sua promessa de terminar a construção do muro com o México, construindo mais de 440 quilómetros da fortificação que tem sido sucessivamente aumentada pelos últimos Presidentes. Durante mais de um mês (de 22 de Dezembro de 2018 a 25 de Janeiro de 2019), grande parte do Governo norte-americano e dos serviços públicos simplesmente pararam de funcionar, naquele que foi o mais longo shutdown da história americana, consequência do “braço de ferro” de Trump com o Congresso, que se recusou a aprovar os 5,7 mil milhões de dólares que o Presidente havia pedido para a construção do famoso muro fronteiriço. Depois de um impasse tão grande, o Presidente e as Câmaras acordaram um financiamento no valor de 1,375 mil milhões de dólares, consideravelmente menos do que o desejado, mas mais do que nada, em troca da reabertura do Governo e fim do shutdown.
Na sequência da tentativa de pôr fim ao DACA, o programa de Obama que facilitou a permanência de imigrantes ilegais no país, o Presidente Trump passou a lei da “tolerância zero” com estas pessoas, o que resultou na separação de milhares de crianças dos seus pais, visto que, se para os adultos atravessar a fronteira era um crime, o mesmo não se podia aplicar às crianças. Depois de críticas de todos os sectores da sociedade, da Igreja e da ONU, Trump reverteu esta sua política, sendo que a larga maioria das crianças já foi devolvida aos seus pais.
ECONOMIA
É praticamente incontestável que a economia foi o grande ponto forte da presidência de Trump, que atingiu níveis de crescimento e emprego recordes na história do país. Na verdade, a economia americana já estava em boa forma, mas em Dezembro de 2017, o Presidente assinou a Lei de Cortes de Impostos e Empregos, que reduziu o imposto sobre as empresas e o capital para 21%, reduzindo ainda significativamente os impostos pessoais, aumentando o crédito tributário infantil (o equivalente ao abono de família) e criando mais estímulos para a contratação de funcionários, o que resultou na mais pequena taxa de desemprego dos últimos 50 anos (3,5% entre Dezembro de 2019 e Fevereiro de 2020) e no menor desemprego de sempre no que toca às mulheres, aos latinos e aos afro-americanos. Do mesmo modo, nunca os EUA tinham crescido durante tanto tempo (121 meses de expansão, desde Obama a Trump), tendo, todavia, a taxa de crescimento aumentado nos primeiros anos da actual presidência.
A nomeação de Jerome Powell para a Reserva Federal (banco central norte-americano) concretizou-se em taxas de juro baixíssimas, que resultaram na euforia da bolsa de valores norte-americana e no crescimento económico.
Por outro lado, também o proteccionismo foi uma marca da presidência de Trump, que procurou impor uma política de “America First” que priorizasse o produto nacional em detrimento do estrangeiro e protegesse a indústria doméstica da concorrência de países com salários mais baixos, como o México ou, principalmente, a China. Assim, foi sempre um crítico dos acordos comerciais, em especial do NAFTA, tendo também abandonado as negociações com a Parceria Transpacífica (TPP) e tendo imposto altas tarifas de importação sobre o aço (25%) e sobre o alumínio (10%), embora com isenções para o México e Canadá. Esta medida desencadeou um conflito com a União Europeia, que respondeu na mesma medida. A guerra comercial com a China resultou também em tarifas consideráveis sobre os produtos mútuos, com benefícios e prejuízos para ambos.
Nos últimos meses, a pandemia afectou a economia mundial, sem excepção para a americana, que, pela primeira vez em mais de 10 anos, conheceu um período de recessão e alto desemprego. Todavia, a priorização dada à economia pelo Presidente e o dinamismo natural do país permitiram uma recuperação muito mais acelerada do que no resto do mundo, Por exemplo, em Maio, a taxa de desemprego rondava os 15%, já estando hoje nos 6,7% e a taxa de crescimento do PIB está hoje nos 33,4%, um máximo histórico que não conseguiu, contudo, ultrapassar totalmente a crise. No entanto, este foco na pandemia teve consequências muito grave em termos sanitários, tendo os EUA sido o país com mais casos e mortes de Covid-19 (24 626 441 casos e 408 623 mortes às 11h37 de 19 de Janeiro de 2021).
RIOTS E QUESTÕES SOCIAIS, ÉTNICAS E CULTURAIS
A presidência de Trump é conhecida por ser profundamente politizada no que se trata de questões sociais e civilizacionais. Neste sentido, se em 2016 o então candidato republicano apresentava não poucas declarações de cariz discriminatório, a verdade é que esta tendência se foi revertendo ao longo dos anos.
Todavia, os Verões de 2017 e 2020 foram particularmente “quentes”, na medida em que assistimos a grandes tensões e tumultos raciais, em Charlottesville (2017) e um pouco por todo o país e o mundo (2020). Se em 2017 muitos criticaram a resposta de Trump aos protestos entre supremacistas brancos e movimentos anti-fascistas, em 2020 não foi diferente, na sequência da morte de George Floyd, em Minneapolis. A diferença é que, se em 2017 Trump foi acusado de inação contra os supremacistas; em 2020, foi acusado de excesso de agressividade na resposta aos protestos contra a morte deste cidadão afro-americano. Convém não esquecer, contudo, que, na sequência destes protestos, muitos deles violentos, houve mais de 19 mortos, 14 000 presos e um valor superior a 2 mil milhões de dólares em destruição de propriedade. Isto tudo em tempo de pandemia.
Por outro lado, Trump foi também o primeiro Presidente dos EUA a participar na “Marcha pela Vida”, tendo proposto por variadíssimas vezes a superação do precedente judicial Roe v. Wade, que permite o aborto em todo o país. A oposição à ideologia de género, à participação de transexuais nas forças armadas, aos ANTIFA, ao socialismo, ao Obamacare (que tentou, sem grande sucesso, reverter), a defesa da pena de morte e a escolha de três juízes conservadores para o Supremo Tribunal (Neil Gorgush, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett) foram também questões sociais muito relevantes na presidência de Donald Trump.
PANDEMIA E ELEIÇÕES
Se no início de 2020 tudo parecia bem encaminhado para a reeleição de Donald Trump, o “vírus da China” (nas suas próprias palavras) veio arruinar os seus planos. Apesar da rapidez que apresentou a fechar as linhas aéreas com a China e de investimentos recorde na investigação científica e na medicina, que se traduziram, nomeadamente, na obtenção de vacinas credíveis e com alto grau de eficácia em apenas poucos meses, como é o caso das produzidas pela Pfizer e pela Moderna, muita desorganização e contradições nas medidas tomadas fizeram com que nem a economia recuperasse todo o seu esplendor, nem a situação sanitária estivesse verdadeiramente sob controlo.
Este foi sem dúvida um dos factores determinantes para a derrota eleitoral de Trump, a 3 de Novembro de 2020, contra o ex-Vice-Presidente Joe Biden, em que, apesar de perder, Trump teve a melhor votação de sempre para um derrotado e Presidente incumbente (74 223 744 votos). Todavia, o resultado das urnas foi sempre contrariado pelo ainda presidente dos Estados Unidos, que alegou ter sido vítima de fraude eleitoral, o que nunca foi provado em tribunal.
Protestos em massa, o discurso por vezes abusivo do Presidente cessante, a polarização do eleitorado a níveis nunca antes vistos e a proliferação de fake news levaram a que este mandato terminasse da pior forma, a 6 de Janeiro, com a invasão de milhares de “Trump supporters” ao Capitólio, no dia em que as duas Câmaras certificavam oficialmente a vitória de Biden no Colégio Eleitoral.
DUPLO IMPEACHMENT
Trump vai ter um lugar nos livros por ser o único Presidente da história dos Estados Unidos a ter sido alvo de dois processos de impeachment, o primeiro em 2019/2020 e o segundo já na última semana do mandato, em 2021. No primeiro, o motivo foi a alegada pressão exercida pelo Presidente americano ao seu congénere ucraniano, Volodymyr Zelensky, de modo a ordenar uma investigação a Joe Biden, pelas suas supostas práticas corruptas envolvendo o filho Hunter Biden e a empresa Burisma. Embora a Câmara dos Representantes, de maioria democrata, tenha votado a favor da destituição de Trump, o Senado, então republicano, absolveu o presidente em Fevereiro de 2020.
Por outro lado, este segundo processo de impeachment tem como facto gerador a presumida incitação à insurreição feita por Trump aos seus apoiantes, que se materializa no polémico telefonema do Presidente a Brad Raffensperger e na alegada incitação à invasão do Capitólio a 6 de Janeiro. A primeira fase do processo de impeachment foi já ultrapassada com a votação positiva da Câmara dos Representantes, sendo que o Senado só será chamado a decidir sobre o caso depois da tomada de posse de Biden, algo inédito na história do país. Se Trump for condenado (algo que nunca aconteceu) não poderá nunca mais candidatar-se a um cargo público, o que impediria uma ainda não negada candidatura em 2024.
Trump disse, há dias, a "todos os cidadãos do nosso país, servir como vosso Presidente foi a grande honra de toda a minha vida". E o que é facto é que chega ao fim o mandato presidencial de um dos políticos menos consensuais de sempre e de uma das figuras que marcaram a nossa época. Um mandato nem sempre muito coerente e que deixa muitas marcas positivas, mas também algumas negativas. Podemos gostar ou não, mas é inegável que Trump marcou definitivamente a política americana e mundial. Hoje encerra-se uma era, amanhã começa outra diferente.
Não haverá mais apertos de mão esquisitos a Macron ou a Shinzō Abe, declarações polémicas sobre “tudo e mais um par de botas”, insultos a jornalistas e “amuos” constantes, quebras de protocolo com a Rainha Isabel II, alcunhas para toda a gente, resoluções completamente inesperadas para os grandes problemas da política externa e interna. Assistimos a um reality show sem igual nestes últimos anos. Mas Trump irá, gradualmente, deixar de ser o centro dos noticiários, capa de jornais e tema de conversa nos cafés e nos jantares de gala. Fica, no entanto, como legado o trumpismo e muitos trumpistas, para além de um estilo muito próprio e uma forma de fazer política muito característica. Muito boa ou muito má, não há ninguém que não tenha uma opinião forte sobre o Presidente dos Estados Unidos da América (provavelmente é a última vez que escrevo este cargo referindo-me a Trump). E não sei quanto a vós, mas, no que me toca, os acesos debates sobre o que esta “personagem” ia fazendo vão deixar saudades. Na verdade, Donald Trump vai deixar saudades.
O autor não escreve em conformidade com as regras do novo Acordo Ortográfico.
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