Páscoa em tempos de quarentena
- Francisco Lopes Matias
- 12 de abr. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 18 de abr. de 2020

Ontem de manhã, enquanto meditava no significado do Sábado Santo, olhava pela janela e via uma cidade deserta. Estou há mais de um mês em casa e nunca tinha reparado verdadeiramente nos efeitos que o vírus microscópico tinha produzido na capital. O Eixo Norte-Sul tem agora um carro a cada minuto.
Abateu-se sobre Lisboa um silêncio sem precedentes. A Rua Augusta não tem turistas nem artistas de circo, o metro em hora de ponta é agora um mero detalhe cronológico sem qualquer reflexo na realidade práctica, os Pastéis de Belém deixaram de ser feitos, o fado já só se ouve por Spotify, as bicas já não se servem e os cafés fecharam, os Santos Populares não têm agora a presença do povo que lhes dá nome, as igrejas da Baixa vão acumulando pó, o Marquês não terá os benfiquistas eufóricos a festejar em Maio mais uma conquista (até que enfim que se encontra um ponto positivo!), a Avenida passou de epicentro comercial e encanto das senhoras para mais uma rua por onde se passa sem parar (só se passa), o Bairro Alto à noite está tão vazio como de dia. De “Menina e Moça”, a Lisboa de hoje não tem nada e em ponto algum se compara à formusura do canto de Amália e dos versos de Pessoa e Cesário. Uma cerveja com os amigos é proibida e uma visita a casa dos avós é pôr em risco a sua vida. Estes são os tempos em que vivemos.
E que tempos tão parecidos se viviam na Jerusalém do ano 33, um dia depois de morrer Jesus de Nazaré, para uns uma ameaça ao poder político, para outros um blasfemo, para uma mulher em concreto o único Filho, para dezenas o Mestre e para milhares o Messias. Eis que, no dia anterior, havia sido pregado na Cruz e ao lado de dois assassinos o Salvador e Redentor do Mundo, que carregou inocente e voluntariamente todos os nossos pecados e sofrimentos (e como o “tudo” tende a ser um conceito abstrato, pensemos em todas e cada uma das pessoas que conhecemos. Cristo morreu por esse, e por essa, por mim e pelo estimado leitor). Como é normal depois da morte de um ente querido, também naquela ocasião o dia seguinte foi muito difícil. É quando, depois de tanto chorar e colocar à prova os nossos nervos e emoções, nos apercebemos verdadeiramente do que aconteceu. Caímos em nós. E foi isso que aconteceu a Nossa Senhora, Mãe decerto inconsolável; aos discípulos, que O abandonaram (à excepção de João) à hora da morte; e à cidade santa, deserta, perplexa com o que acontecera. E é o que nos acontece a cada um de nós, hoje, em casa. Sentimo-nos abandonados, órfãos, sem direcção ou destino. Não sabemos quando é que vamos poder sair, não sabemos quando é que retomamos a vida de antes, não sabemos sequer se os que mais amamos estão em segurança. Assim se sentiam os discípulos e assim se sentem milhares de pessoas que hoje perderam o emprego, viram partir um familiar ou estão há mais de um mês sem ver os filhos porque trabalham com doentes infectados.
Mas o que podemos aprender com tudo isto? Muito simples, que a morte não tem a última palavra. Não, com Cristo não. Para um cristão nunca. Porque depois da morte e deste silêncio que quase sufoca e desespera, espera-nos a Ressurreição, a vida que não tem fim; um renascer. Um renascer depois do sofrimento, um renascer depois do pecado, um renascer depois de uma discussão, um renascer depois de um momento pior para nós ou para os outros, um renascer depois de uma injustiça, um renascer depois do Covid-19.
No fundo, estávamos mesmo a precisar da Páscoa. Será uma Páscoa diferente, é verdade; em que os grandes almoços de família serão substituídos por uma refeição mais íntima e pessoal, mas replete-se mais do que nunca do seu significado primeiro e crucial: a certeza de que há um sentido para os sofrimentos e as catástrofes e que estas são esmagadas por algo muito maior. O Papa Francisco, na sua belíssima homilia da Vigília Pascal de ontem, referiu que “Nesta noite, conquistámos um direito fundamental, que não nos será tirado: o direito à esperança. É uma esperança nova, viva, que vem de Deus. Não é mero optimismo, não é uma palmada nas costas nem um encorajamento de circunstância. É um dom do Céu, que não podíamos obter por nós mesmos.” E é esta esperança que é baseada na fé de que um Deus infinitamente bom e misericordioso só permite flagelos como a pandemia que vivemos hoje para deles tirar um bem maior, “pois até do túmulo faz sair a vida”.
A outra palavra que é importante reter nesta Páscoa é coragem, ou seja, a capacidade de sairmos dos nossos medos e do que nos inquieta, de vermos mais além e de não ficarmos prisioneiros de pensamentos ou sentimentos negativos ou derrotistas. “Não tenhais medo”, continuava o Papa, “basta convidá-Lo”, dado que, unidos a Ele, somos fortalecidos pela presença de um Deus que nunca nos abandona ou deixa sozinhos, porque “conVosco a cruz desagua na ressurreição, porque Vós estais connosco na escuridão das nossas noites: Sois certeza nas nossas incertezas, Palavra nos nossos silêncios e nada poderá jamais roubar-nos o amor que nutris por nós.”. Francisco exortou-nos ainda a termos coragem nesta hora tão negra e a não desistirmos, seja qual for a circunstância (“Minha irmã, meu irmão, ainda que no coração tenhas sepultado a esperança, não desistas! Deus é maior. A escuridão e a morte não têm a última palavra. Coragem! Com Deus, nada está perdido”).
Por último, a alegria que sentimos e recebemos nesta Páscoa, farol no meio da escuridão presente, não deve limitar-se à nossa vivência pessoal e individualista, mas estender-se aos outros, à comunidade que nos espera, à família e ao país. E, graças a pessoas com este espírito, temos assistido a algo sem precedentes: uma onda de solidariedade que vai desde aplausos nas janelas a pães oferecidos por supermercados, reuniões de família e encontros de amigos pela internet, milhares, senão milhões, de famílias unidas, obrigadas a partilhar todo o dia aquele espaço que por natureza e afecto deveria já ser o seu, mas que agora vêem uma oportunidade de ouro para fortalecer-se enquanto núcleo. A Páscoa, mesmo vivida em quarentena, é um tempo muito especial. Como dizia Albert Einstein, a propósito deste período tão marcante, “algumas coisas são explicadas pela ciência, outras pela fé. A Páscoa ou Pessach é mais do que uma data, é mais do que ciência, é mais do que fé, Páscoa é amor”.
Um cristão deve ser sempre um anunciador da vida e da Ressurreição, principalmente em tempos de morte. E esta é a nossa missão, como filhos, como irmãos, como netos, como vizinhos, como estudantes e amigos, mas, principalmente, como seguidores de Cristo. Vamos cumpri-la com alegria e amor, servindo e consolando quem está à nossa volta, aproveitando o vigor da nossa juventude para dar novo alento aos que nos rodeiam e connosco convivem diariamente.
Votos de uma Santa Páscoa para todos vós!
O autor não escreve em conformidade com as regras do novo Acordo Ortográfico.
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