The times they are a-changin': Um retrato da mudança ao som de Bob Dylan
- Francisco Pinto
- 14 de jul. de 2020
- 4 min de leitura

Como símbolo do folk de protesto, lenda do Rock n’ Roll ou simplesmente poeta, a figura de Bob Dylan é incontornável em matéria de música e literatura moderna. Contando com dezenas de álbuns desde 1962 até aos dias de hoje, Bob Dylan tem vindo a personificar, ao longo da sua longa carreira, a fusão artística do verso com a melodia de forma exímia e inovadora para o contexto da música popular, o que lhe valeu a conquista do prémio Nobel da literatura em 2016, o primeiro em 103 anos a ser atribuído a um músico.
The times they are a-changin’, de 1964, é sem dúvida dos temas mais celebrados do repertório musical de Dylan, quer pelo simbolismo temático inerentemente associado à época, quer pela própria estrutura dos versos, responsáveis por um tom marcadamente épico e quase profético.
Escrita em 1963, ainda antes do assassinato de JFK, The times they are a changin’ goza de uma certa originalidade dentro do padrão das protest songs características do folk norte-americano dos anos 60. De facto, podendo (ou não) ser incluída na categoria das canções de protesto, trata-se não de uma crítica ou denúncia direta de um determinado aspeto da realidade socio-política, mas de um alerta para a mudança enquanto constante, tendo sido particularmente relevante no contexto das transformações sociais dos anos 60.
Os versos “Come gather round people, wherever you roam/ And admit that the waters around you have grown” guiam o início da canção numa referência ao dilúvio bíblico, metaforicamente representativo da ideia da destruição do infértil em prol do florescimento do novo e renovado, à qual se seguem os versos “If your time to you is worth saving/ Then you better start swimmin’ or you’ll sink like a stone”, em que o caráter profético da anunciação da mudança é acompanhado pela ideia de inevitabilidade da mesma, destinada a indiferentemente afundar aqueles que recusarem o confronto com ela.
A genialidade deste tema de Bob Dylan prende-se bastante com o facto de ter conseguido captar, numa fase ainda relativamente embrionária da sua manifestação física, a incompatibilidade sociocultural de uma nova geração de jovens americanos face à geração dos seus pais, o que se torna particularmente evidente se atendermos aos versos “Come mothers and fathers throughout the land/ And don’t criticize what you can’t understand/ Your sons and your daughters are beyond your command”, através dos quais Dylan retrata a evidente incomensurabilidade entre duas gerações separadas pela guerra, estando a mais jovem em pleno processo de rutura face às normas sociais dominantes até aos anos 50, à sombra das quais tivera crescido, num comportamento de rebeldia contracultural que ditou um espaço inter-geracional pronunciadamente vazio. É precisamente esta contracultura associada ao folk, ao movimento hippie, ao civil rights movement, à liberalização do sexo e das drogas e, uns anos mais tarde, ao rock psicadélico, que surge neste tema de Dylan como o gatilho das profundas mudanças que farão as águas subir e as janelas tremer (“Will soon shake your Windows and rattle your walls”).
Sendo verdade que The times they are a-changin’ data de tempo histórico concreto e próprio, restringir o seu significado lírico ao contexto das tensões sociais dos anos 60 seria redutor, por se tratar de uma caracterização poética da mudança enquanto conceito, marcado por uma vasta riqueza literária. O retrato simbólico da mudança com recurso à imagem do dilúvio e à referência ao Evangelho de São Marcos (“And the first one now will later be last”), ambos elementos bíblicos, surge ao serviço do seu caráter renovador, isto é: que destrói para purificar e fazer florescer, e virtuoso, na medida em que surge para de alguma forma estar mais em conformidade com a justiça e o bem, em auxílio dos “últimos”.
Estilística e estruturalmente, Bob Dylan serve-se de um estilo claramente profético de quem se dirige a entidades próprias com apelos concretos, verificando-se também o predomínio de frases axiomáticas do tipo declarativo que, graças à pertinência das imagens e metáforas, conferem a Dylan um certo tom de autoridade enquanto aquele cuja finalidade é anunciar a mudança. A nível melódico, a estrutura do som da guitarra acústica é, ao longo do tema, uniforme, com o toque nas cordas a ocorrer sempre de cima para baixo e com a mesma frequência, numa melodia pura acompanhada pela clássica harmónica no refrão. É precisamente a existência de um som acústico produzido a partir de investidas rápidas e uniformes que atribui à música um som hipnótico bastante coerente com as características semi-proféticas dos versos, referentes à temática da mudança.
Ironicamente, as águas levantaram-se para Bob Dylan imediatamente após o lançamento do álbum batizado precisamente com o nome The times they are a-changin’, em 1964. Possivelmente desencantado com o assassinato de JFK e a entrada dos EUA na guerra do Vietname, Dylan torna-se cético em relação ao impacto efetivo da sua música enquanto elemento interventivo na realidade social, afastando-se do movimento folk de protesto ao abraçar elementos sonoros do emergente Rock n’ Roll, que fundiu com a tradição poética e acústica folk, e letras mais melancólicas e instrospetivas, sem preocupações diretas com matéria sociopolítica. Se é verdade que Dylan foi por muitos acusado de traição, será igualmente verdade que deixar para trás os temas da guerra e da justiça permitiu que o mesmo se aventurasse por temáticas mais conceptuais, abstratas e até surrealistas, ao som de melodias riquíssimas e muito para além do anterior conjunto “guitarra acústica+harmónica”, revolução a nível musical que originou álbuns lendários como Blonde on Blonde (1966), Blood on the Tracks (1975) ou até a obra prima Rough and Rowdy Ways, lançado por Dylan há pouco mais de uma semana.
Não deixa de ser igualmente irónico que uma canção sobre a inevitabilidade da mudança tenha adquirido um caráter imutável na relevância dos seus versos. Num mundo em constante mutação, quer seja por revoluções, guerras ou pandemias, torna-se quase inevitável ver as janelas a tremer e as águas a subir. A resposta, diz-nos Dylan, é relativamente simples: “You better start swimmin’ or you’ll sink like a stone”.
Francisco Pinto, estudante de Economia na Nova SBE
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