"Unknown Pleasures ou O abismo aos olhos de Ian Curtis e Joy Division"
- Francisco Pinto
- 11 de out. de 2020
- 4 min de leitura

Capa do álbum Unknown Pleasures, de 1979
Indiscutíveis pioneiros na construção e desenvolvimento do post-punk, os Joy Division gozam da indubitável reputação de uma das bandas mais influentes e consagradas dentro do género, tendo apenas lançado dois álbuns: Unknown Pleasures, de 1979, e Closer, de 1980.
Contando com uma das mais emblemáticas capas de álbuns de música moderna, o álbum Unknown Pleasures constitui um dos trabalhos mais aclamados dos anos 70 e a grande obra prima da banda de Manchester. Trata-se de um álbum pesado e introspetivo, que pretende explorar conceitos como alienação, perda e ausência de rumo, numa orientação lírica e temática conduzida pela incontornável figura de Ian Curtis, vocalista e compositor do grupo.
A influência de Ian Curtis é de enorme importância para a identidade sonora e conceptual de Joy Division e Unknown Pleasures, uma vez que constitui a personificação da alienação que se faz sentir nos versos do álbum e na consequente combinação de ritmos e melodias que a acompanham. Tendo sido prematuramente referenciado como possuidor de uma inteligência acima da média, mas também de um temperamento instável, Curtis levou uma vida curta e intensa, falecendo aos 23 anos num suicídio decorrente de problemas de saúde mental. Apaixonado por literatura e filosofia, Curtis era um dedicado admirador de Kafka, de onde retirou inspiração para compor sobre temas particularmente pesados, cantados ao som da voz inerte e inexpressiva que o caracterizava.
She’s lost control, tema de Unknown Pleasures, é um dos temas mais celebrados do repertório musical dos Joy Division, tendo sido composto por Ian Curtis na sequência de ter presenciado um ataque epiléptico de uma mulher, pouco antes de ele próprio ter sido diagnosticado com epilepsia. A incapacidade de controlo e a quase escravatura do indivíduo perante impulsos incontroláveis são o principal foco do tema, capaz de nos engolir numa avalanche de sons que, pelo seu encadeamento e natureza, vão construindo ao longo do verso a sensação de uma bolha de emoções efervescentes.
Na versão do álbum, o ritmo é marcado pela ecoante bateria de Stephen Morris e pelo som de uma lata de spray, imprimindo imediatamente um tom notavelmente distante, dúbio e por isso confundível com a ilusão, enquanto a melodia grave do baixo de Peter Hook se assume como introdutória, gozando de um protagonismo raramente atribuído ao instrumento, mas coerente com o contexto temático da música. Paralelamente, o verso apresenta-nos uma descrição da perda de controlo pela lente de um terceiro, que nos retrata o desespero de uma mulher que se agarra a um transeunte (“And she’s clinging to the nearest passerby/She’s lost control”) antes de ouvir uma voz que fatalmente a obriga a agir contra a própria vontade, dizendo repetidamente “when and where to act”. É precisamente aqui que surge uma sequência de acordes ascendentes e distorcidos de uma guitarra elétrica, transmitindo a sensação do crescente desespero, reforçado graças ao efeito de eco na voz de Ian Curtis.
Deste modo, toda a acústica de She’s lost control surge com o propósito de criar uma atmosfera sonora pesada e distante, que se serve da distorção do baixo e da guitarra para expressar a angústia do auto-encarceramento, da impotência perante o impulso e da agonia do grito inaudível. A lugubridade crua do som de Unknown Pleasures e de Joy Division no geral goza de um mérito acústico único, uma vez que se concretiza muito através da sua riqueza a nível instrumental, que convencionalmente associamos a estilos mais alegres.
Neste sentido, há de facto um paradoxo em Joy Division, na medida em que o seu som se serve da quantidade e da variedade a fim de retratar a ausência e o vazio, sendo isto particularmente relevante não só em She’s lost control mas também noutros temas tais como Atmosphere ou Love will tear us apart, nos quais o contraste entre a riqueza instrumental e a temática pesada é notório.
A sonoridade sombria mas simultaneamente rica de Joy Division veio assim fundir-se na perfeição com os versos compostos por Ian Curtis, que seguiam exatamente a mesma regra na crueza com que sugerem constantemente imagens vívidas de desconforto emocional. É precisamente esta perícia no retrato dos podres da existência humana que coloca a banda de Manchester na vanguarda do Post-punk, uma variante do punk mais introspetiva e que pretendia pintar a raiva para com o establishment não a partir do barulho e da revolta tradicionais do punk-rock mas do retrato da própria melancolia enquanto consequência e produto do meio criticado. Nesta linha, Ian Curtis assentou no post-punk como uma luva, sendo a personificação dos conceitos acima descritos. A sua extraordinária sensibilidade trouxe literariedade ao post-punk e aos Joy Division e as suas experiências pessoais de epilepsia e depressão refletiam-se não só na lírica mas também na atitude em palco, da qual se destaca uma expressão facial inerte acompanhada por movimentos corporais estranhos e parcialmente involuntários, como se de uma dança que imita a epilepsia se tratasse.
Sendo eu relativamente novato na praia do post-punk, explorar Joy Division foi definitivamente um bom começo. A forma imersiva como as melodias nos sugam para as palavras de Ian Curtis faz dos seus temas verdadeiras experiências sensoriais que foram indubitavelmente inovadoras para o contexto da época tanto a nível sonoro como conceptual, tendo transformado os Joy Division num símbolo do post-punk e um ícone da música popular moderna.
Francisco Pinto, estudante de Economia na Nova SBE
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