Variações: Um espelho do Portugal do pós-25 de Abril
- Francisco Pinto
- 20 de abr. de 2020
- 3 min de leitura
"Não me conheço. Tenho imensos contrastes que a mim próprio me surpreendem..."
-António Variações, 1981
Quer seja pela aparência, pela vida atribulada, ou pelo próprio repertório musical, a personagem de António Variações é indubitavelmente de difícil desconstrução e análise, muito graças à sua natureza intrinsecamente paradoxal, que constitui, a meu ver, o elemento-chave da obra que nos deixou.
Percecionado com enorme estranheza pela ainda conservadora Lisboa do pós-25 de Abril, devido à forma propositadamente peculiar como se vestia e cantava, Variações trazia na sua persona artística a modernidade de Amesterdão e Londres, onde trabalhou como barbeiro, e, paralelamente, o Fado e o folclore português, dos quais bebera durante a juventude entre o Minho e a Capital. Se, por um lado, Variações foi pioneiro na introdução da música portuguesa ao rock da guitarra elétrica e da bateria, soube também casar a novidade com o folclore lusitano através de um timbre tipicamente fadista. É nesta ótica que a obra de Variações assume perante a realidade histórica portuguesa um caráter quase documental, na medida em que regista uma clara dicotomia, tanto a nível melódico como lírico, entre o tradicionalismo e a vanguarda numa sociedade que aspirava caminhar para a modernidade europeia, embora ainda demasiadamente centrada sobre si mesma.
De facto, a acompanhar a chegada da democracia em 1974, assiste-se também a uma progressiva infiltração das modas e influências europeias nos costumes da sociedade portuguesa, nomeadamente numa juventude que, tendo crescido no interior das paredes do Estado Novo, se encontrava agora em processo de reaprendizagem do exercício da liberdade, claramente marcado por um desejo de modernização que contrastava com o atraso verificado no país face às grandes metrópoles em matéria sociocultural e na música, em particular.
António Variações veio, assim, espelhar na sua obra as contradições de um Portugal em metamorfose. Em canções como “Estou Além” e “Perdi a Memória”, é particularmente relevante o contraste entre o timbre fadista e a euforia da guitarra elétrica, do moderno sintetizador e dos solos de saxofone, uma vez que assume um propósito temático deliberado. Numa linha literária muito pessoana, os versos de Variações revelam uma consciência lúcida perante as contradições do “eu” na forma como retratam, nestes dois temas em particular, um sujeito que não cessa de procurar o seu lugar (“Vou continuar a procurar/O meu mundo, o meu lugar”), ainda que na impossibilidade de se situar enquanto indivíduo na objetividade de um tempo cronológico ou espaço físico (“Não sei como sou/Não sei se sou novo ou velho/Não sei onde estou”).
Na sua incapacidade de se autodefinir por conta dos paradoxos inerentes a si próprio, Variações trouxe-nos um som “entre Braga e Nova Iorque”, tendo sido exímio ao espelhar o sentir de todo um coletivo que, paralelamente, não sabe se é “novo ou velho”, isto é, se se há de virar para a Europa ou para as raízes. A personificação desta dicotomia entre o moderno e o tradicional em António Variações é talvez o que mais me fascina na sua figura, ainda que tal possa ter sido uma das causas de uma certa incompreensão da sua obra.
Tímido nas relações, mas extravagante em palco, António Variações carregou na sua obra e persona as contradições de um tempo histórico muito concreto. Ao som da novidade do Blues e do Rock, António cantou, na sua voz inequivocamente portuguesa, as inquietações de uma geração que se reinventava numa nova era de liberdade. Neste sentido, Variações, embora nem sempre bem compreendido, foi único e revolucionário, tendo tido o génio de retratar, através da totalidade da sua obra artística, muito do que foi o Portugal do pós-25 de Abril.
Se, para Variações, “Em frente não havia mais nada, não/ Do que um comboio, a cidade, / Um navio e um avião” (Olhei P’ra Trás, 1984), para Portugal não terá sido diferente.
Uma crónica de Francisco Pinto
Estudante de Economia na Nova SBE
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